2

Aqui, com várias cicatrizes da vida, ela segue a suturar silêncios. Perdido em uma escrita de um poema impossível, eu sondo reescrever meus abismos. 15h e o deserto da tarde, uma palavra sem rosto, o céu-carvão, um bar incerto, a cidade submersa. À margem da terra úmida a ocultar restos de pele, em nossos corpos a memória de uma floresta arde a língua de uma ausência, a falta de um corpo, a falha de um corpo. Entre mim e a mulher, esse deus da distância: o silêncio.

Penso em uma outra religião, um deus em um outro sexo, sem polícia secreta, sem armas, sem honras nem hematomas, sem nenhum patrimônio. Penso nesse deus criado sem sentenças, sem sangue e sem verbo, um deus da matéria mais simples e primeva, uma forma irredutível ao aceno de qualquer mão sedenta de poder, um deus criado da água. Ela, a água, o deus. Sem ágio nem ódio, sem devoção nem débito, sem conseguir reter, sem possuir, uma linguagem aquífera. Ela, uma nova hóstia, esse outro corpo, a Água. Aprenderíamos quando a chamar deus em feminino, a ensinar a um deus-menino sobre Ela, a inapreensível matéria. Assim, quem sabe, diante deste ser que há séculos sutura silêncios, incorpórea em todos os corpos, terrena e etérea, a magra mulher aqui, à minha frente, descosturasse agora a lombada do livro de um deus e nos libertasse de todo o sangue das páginas já escritas. Com a tinta da terra, uma única escritura viria a lume: hás de descer, hás de te descriar. Reescrevo o texto, rascunho, “hás de descer, hás de te descriar”, errante sempre o poema. A mulher, que segue a suturar silêncios, olha-me por um instante. Para o impossível de nomear, eu a escrevo Maria. Compreendi que qualquer nome, uma pessoa em anunciação de um ser, a certeza de um nome seria incapaz dos silêncios que ela transpirava. A magra Maria, a servir os outros, não se dobra a domesticações. Ela e o corpo que não cala. Na fome do dinheiro gasto de uma mão para outra, o gesto arredio, a queda do copo cheio, tentativa vã de reter algo, espasmo do corpo, estilhaços, a mulher fez-se palavras: – Escreva menos.

            Virou-me as costas. Seus ossos sob a pele movem-se como ferrolhos entre a carne. Há silêncios que são corpos impossíveis de se escrever. A tarde é esse incêndio que não sabemos enunciar. Uma descriação é sempre um outro nome.

*O artigo acima é de total responsabilidade do autor.

Daniel da Rocha Leite
Licenciado pleno em Letras e doutor em Estudos Comparatistas pela Universidade de Lisboa. Recebeu, em 2007, o Prêmio Carlos Drummond de Andrade / SESC-DF. No mesmo ano, também pelo SESC-DF, foi finalista do Prêmio Machado de Assis.  Com o romance Girândolas, em 2009, recebeu o Prêmio Samuel Wallace Mac-Dowell / Academia Paraense de Letras. Em 2018, recebeu o Prêmio Amazônia de Literatura, categoria Poesia. Entre contos, romance, poesia, crônicas e literatura infantojuvenil, possui dezesseis livros publicados.

    Escândalo no comando da Polícia Ambiental da PMPA

    Anterior

    Sefa contrata Prodepa com recursos do BID

    Próximo

    Você pode gostar

    Mais de Cultura

    Comentários