Se até algum tempo atrás acreditava-se no mito da democracia racial, que o processo de encontro de raças e a miscigenação nos transformou em um país forte e pujante, atualmente esse ideal cai por terra ao se reconhecer o racismo presente nas mais diversas formas. E nos estádios de futebol isso é ainda mais evidente. Não apenas no Brasil, mas mundo afora.
Resgatando um pouco da história do futebol no país, a paixão nacional tem origem elitista e era praticado somente por pessoas de uma classe mais abastada, branca e de origem europeia. Conforme foi se popularizando, naturalmente passou a ser praticado por pessoas de todas as classes e origens, mas sua profissionalização se deu de maneira tormentosa com verdadeiros choques culturais.
No futebol do Rio de Janeiro, o Fluminense foi um dos primeiros clubes elitistas a admitir jogadores negros, porém para não causar tanta reação contrária na época, ficou célebre a história do atleta Carlos Alberto, que era instado a usar disfarces para parecer menos negro e ser mais aceito. Daí o famoso apelido do time de “pó de arroz”.
Essa pequena história dá o tom do quanto o racismo no futebol é enraizado. Claro que é fruto do racismo estrutural da própria sociedade brasileira e mundial. Mas essa conclusão não pode ser argumento para se “lavar as mãos” e nada se fazer especificamente nesse seguimento.
É preciso se ter em mente que exatamente por ser uma paixão nacional e internacional, o futebol movimenta bilhões de reais e acompanhado por bilhões de pessoas ao redor do mundo, com ampla visibilidade e que certamente influencia na formação e conduta de crianças, jovens e adultos.
O poder público e a sociedade tem reagido de maneira cada vez mais assertiva a episódios de racismo nos estádios de futebol.
Os casos mais notórios tem sido os que envolvem o jogador brasileiro do Real Madrid Vinicius Junior, que constantemente é hostilizado por grupos de torcidas rivais em razão da cor da sua pele. O fato dele reagir corajosamente a cada ato hostil e criminoso parece provocar ainda mais a fúria dos agressores. Mas a maioria da população está ao lado do jogador, o que tem pressionado as autoridades locais a reconhecer a existência do problema e tomar medidas concretas para enfrentar o problema, sem tergiversações ou minimizações como “atos isolados”.
Em solo brasileiro, inúmeros são os casos de racismo explícitos ou dissimulados. Cite-se como exemplo os casos mais recentes envolvendo os jogadores Aranha, Tinga, Arouca, Roberto Carlos e o árbitro Márcio Chagas da Silva, todos com ampla repercussão midiática.
Mas, e a legislação, como fica nesses casos?
Datado de 2003, o Estatuto do Torcedor previa ser proibido aos torcedores portar cartazes ou entoar músicas ou gritos de guerra discriminatórios, sob pena de impedimento da pessoa voltar a frequentar os estádios. Atualmente esta lei foi revogada pela Lei Geral do Esporte – 14.597/2023, que prevê que torcidas organizadas que promovam atosa discriminatórios podem ser proibidas de retornar aos estádios por até 5 anos, além de outras sanções.
O Código Brasileiro de Justiça Desportiva, de 2009, prevê punição para atos racistas, com o afastamento dos estádios por no mínimo 120 dias. Caso a prática seja feita por um grupo de pessoas, o clube no qual o torcedor é vinculado pode ser punido com a perda de 3 pontos no respectivo campeonato, e havendo reincidência, a perda de 6 pontos e em casos limite no qual não haja a existência de pontos até mesmo a exclusão da equipe da competição.
Em 2022, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol contabilizou 90 denuncias de racismo ocorridas em solo brasileiro, representando aumento de 40% no total de denuncias ocorrido no ano anterior.
A CBF – Confederação Brasileira de Futebol – em 2023 foi pioneira ao estabelecer no Regulamento Geral da competição que qualquer ato discriminatório será considerado de extrema gravidade, com rigorosas punições aos envolvidos. E também passou a desenvolver campanhas educativas e de conscientização envolvendo clubes e jogadores, com mensagens antirracistas para o publico nos estádios e para todos que acompanham os jogos pela televisão.
A punição a atos racistas também ganhou importante aliada na legislação penal, com a recente equiparação do crime de injúria racial ao racismo, majorando a pena do primeiro e tornando-a imprescritível e inafiançável, por meio da lei 14532/2023.
Em linhas gerais, os estudiosos do tema costumam apontar tres tipos de vitimização de atletas negros relacionados ao racismo.
A primária, na qual o crime em sí ocorre, são os danos diretos que as vítimas são submetidas pela prática racista, sejam materiais, físicos ou psicológicos.
A secundária está relacionada com o envolvimento da vítima com os organismos formais do sistema de justiça, o que a força a necessariamente narrar e revivenciar o ato por diversas vezes, causando dor e sofrimento. É a chamada revitimização.
A vitimização terciária diz respeito ao comum e tradicional descredibilização da palavra da própria vítima, não acolhendo-a adequadamente e desencorajando-a a realizar denúncias e seguir em frente em seus processos, resultando em falta de apoio institucional e social a quem denuncia.
Ainda ganha destaque o conceito de Racismo Recreativo, que é aquele que as práticas racistas são disfarçadas por meio de piadas e deboches com a cor da pele e traços marcantes da raça negra, que tradicionalmente eram encaradas como “zoação”, mas que cada vez menos é tolerada por se tratar sem sombra de dúvida de prática criminosa. Algo ainda tão comum nos estádios, mas cada vez menos aceito. É crime!
O caminho é longo e tortuoso, pois toda mudança de paradigma é penosa, cabendo a sociedade não tolerar práticas racistas dentro ou fora do estádios e cobrar mais medidas efetivas e eficazes para reconhecer o problema, enfrentá-lo e criar políticas públicas que disseminem uma cultura de paz e respeito à diversidade e sem qualquer tipo de descriminação.
Isto sim é uma Democracia.
*Este é um texto de educação em direitos contendo opiniões pessoais do autor.
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