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Fotos: Jean Brito e Ozéas Santos
Os 51 anos do golpe civil-militar e suas graves
consequências foram debatidos durante Audiência Pública conjunta da Comissão
Estadual da Verdade e a Comissão de Direitos Humanos da Alepa
, da qual
participaram entidades de defesa dos direitos humanos que atuam no
Pará, além de autoridades e o público em geral. Ao final foi redigida, lida e
assinada pelos presentes a Carta ao Pará, documento no sentido de que nunca
mais se permita a ruptura do regime democrático. Integrantes da mesa oficial, fizeram
pronunciamentos os deputados Carlos Bordalo, do PT (presidente da Comissão de
Direitos Humanos e membro da Comissão da Verdade do Pará), Lélio Costa(PCdoB),
Soldado Tércio(PROS) e Ozório Juvenil (PMDB), todos membros da Comissão de Direitos
Humanos da Alepa; vereadoras Marinor Brito(PSOL) e Sandra Batista(PCdoB), o
secretário de Estado de Justiça e Direitos Humanos, Michel Durans; o advogado Egydio
Sales Filho, presidente da Comissão Estadual da Verdade; a jornalista e
advogada Franssinete Florenzano, presidente da Comissão da Verdade do Sinjor-PA
e membro titular da Comissão da Verdade do Pará; o advogado Jorge Farias,
representante da OAB-PA, e o representante da Comissão César Leite da UFPA.

Na ocasião, fiz um relato histórico do apurado pela Comissão da Verdade do Sinjor-PA. Ei-lo:

Ditadura nunca mais!
A repressão e
a violência física e psicológica fizeram parte da vida de muitos jornalistas no
Pará, em um contexto de cobertura de fatos que envolvia conflitos agrários,
ocupação socioeconômica da Amazônia e a própria visão política que se tinha da
região na época, sustentada pela ideologia da segurança nacional. A Amazônia
era vista como um sertão metodologicamente caracterizado como um estágio de
desenvolvimento pré-industrial, de larga extensão territorial, não homogênea,
isolada geograficamente e ligada de maneira débil ao sistema econômico
nacional. Desta forma, no período que compreende 1964 a 1985, a região foi
palco de um projeto geopolítico de ocupação territorial, por meio de ações que
massacraram povos tradicionais (como indígenas e quilombolas), incentivaram a
destruição da floresta e impactaram o crescimento social e econômico.
Ainda hoje é
assim. A diferença é que, nos dias de hoje, o jornalismo exerce suas atividades
com mais liberdade. E muitos jornalistas e meios de comunicação independentes,
além de movimentos sociais, desenvolvem seu trabalho de informar à sociedade
brasileira o que se passa na Amazônia – ou, pelo menos, divulgando versões e
análises alternativas sobre os fatos, diferentes das veiculadas pelos governos
e grupos econômicos.
Renato Soares,
Raimundo
Jinkings, Luiz Maklouf Carvalho, Ruy Barata, Benedicto Monteiro, João Marques,
Raimundo José Pinto, Manoel Bulcão, Pedro Estevam da Rocha Pomar (que usava o
codinome Marcos Soares), Ana Diniz, Lúcio Flávio Pinto, Paulo Roberto Ferreira,
João Vital, Nélio Palheta, Sérgio Palmquist, Agenor Garcia, Rosaly Brito,
Miguel Chikaoka, Sérgio Bastos e Carlos Boução, entre outros jornalistas que
atuavam tanto na chamada grande imprensa quanto em jornais alternativos como o
“Resistência”, editado pela Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos,
foram mencionados durante os depoimentos nas audiências públicas da Comissão da
Verdade dos Jornalistas do Pará, realizadas no auditório João Batista da
Assembleia Legislativa.
Em fevereiro
de 1978, foi criado o Jornal Resistência, um dos produtos de comunicação mais
populares e ácidos publicados durante o regime militar.
“Por sinal esse nome foi uma sugestão do jornalista
João Marques, que era presidente do Sindicato dos Jornalistas, inclusive com a
sua palavra de ordem, ‘Resistir é o primeiro passo’. Participaram também muitas
pessoas, dentre elas, nessa assembleia histórica na Igreja de Nossa Senhora
Santa Terezinha, o jornalista Raimundo Pinto, irmão do Lúcio, que era um
ativista no Movimento de organização do Sindicato dos Jornalistas”,
relatou, em depoimento, o jornalista Paulo Roberto Ferreira,
concursado na Caixa Econômica Federal em 07/04/1976 que, em 05,11.1980, foi
demitido, sem justa causa, em decorrência de perseguição política, porque
atuava como jornalista voluntário no jornal “Resistência”, da Sociedade Paraense
de Defesa dos Direitos Humanos, a SPDDH, e militava na luta pela
redemocratização do País.
Antes, Paulo Roberto fora
transferido para Óbidos, a 996 Km de Belém, por via fluvial. Era recém casado,
sua mulher trabalhava em Belém e sua primeira filha já estudava, também em
Belém. Reintegrado por força de ordem judicial, concorreu à diretoria da
associação de funcionários, o que lhe asseguraria o direito à imunidade
sindical. Na véspera da eleição, foi demitido.
O regime político agia em
várias frentes. Além de criar toda sorte de embaraço, no seu local de trabalho,
intimidava, convocava e indiciava as pessoas, de forma a provocar pânico e
medo.
O primeiro presidente da
SPDDH foi o advogado e na época ex-preso político Paulo Fonteles de Lima (que
depois foi deputado estadual e assassinado), quem decidiu criar um veículo de
comunicação, com o objetivo de difundir as notícias que a grande imprensa, por
conveniência, autocensura e até mesmo por imposição da censura oficial, não
publicava. E assim despontou o jornal “Resistência” em 1978, que funcionou
regularmente até 1983, depois esporadicamente, e hoje é veiculado na internet.
Embora a sede da SPDDH
funcionasse numa sala da casa paroquial da igreja católica de Nossa Senhora
Aparecida, no bairro da Pedreira, em Belém, era diagramado na casa do editor ou
de algum colaborador. O temor do empastelamento atormentava a todos os que
faziam o jornal. Diagramadores que trabalhavam na grande imprensa não permitiam
que seus nomes figurassem no expediente.
A primeira edição do
Jornal Resistência estampou na capa o título “Novos conflitos na fazenda
Capaz”, situada no município de Paragominas. O número 2 tinha como manchete
“Quem decide por Alacid?”. Analisava o desempenho do tenente-coronel Alacid
Nunes, governador paraense nomeado pela segunda vez, em meio às disputas
ocultas no meio militar. O número 3 fazia uma acusação de corrupção ao
ex-governador e ex-senador pelo Pará Aloysio Chaves. E na quarta edição os
temas eram “Corrupção no cais” e “Grilagem no Maranhão”. Antes que a quinta
edição deixasse a gráfica, todos os exemplares foram apreendidos pela Polícia
Federal, sem mandado judicial. Isso foi em agosto de 1978.
A fúria dos censores foi a
matéria de capa da edição, que tratava do depoimento de quatro ex-presos
políticos, ao contarem as torturas que sofreram nas dependências dos órgãos da
repressão militar. “Fomos torturados no Ministério do Exército”, era a
manchete. Os quatro eram Hecilda Veiga, socióloga; Humberto Cunha, agrônomo;
Paulo Fonteles, advogado; e Isabel Tavares, historiadora.
Casados, Paulo e Hecilda
foram presos quando estudantes, em Brasília, onde foram torturados dentro de uma
unidade do Exército Brasileiro. Humberto e Isabel também eram casados. Humberto
foi vítima do Decreto 477, que legitimava a expulsão de estudantes que
figuravam na lista negra da ditadura. Os quatro atuaram como militantes de
organizações clandestinas e eram membros do PC do B na época do processo contra
o Resistência. Mas estavam legalmente filiados ao MDB, o partido de oposição
consentido pelo regime.
Faltavam dois dias para o
Círio de Nazaré, quando haveria manifestação contra a
prisão dos padres Aristides Camio e François Gouriou e mais treze posseiros do
Araguaia. A gráfica Suyá, que imprimia o Resistência, estava produzindo material para divulgação. No dia 8 de outubro de 1982, a
Polícia Federal e a PM invadiram a gráfica e a sede da Comissão Pastoral da
Terra, em Belém, a fim de recolher o material que seria distribuído no dia da
romaria.
Prenderam e arrebentaram.
Espancaram, algemaram, provocaram, identificaram, fotografaram, sequestraram
objetos. Foram duas horas de terror. O editor Luiz Maklouf Carvalho foi
espancado e ameaçado de fuzilamento. O distribuidor do Resistência, Carlos
Boução, foi algemado, junto com o repórter João Vital e o vice-presidente da
SDDH, Daniel Veiga. Dois gráficos, Alberdan Batista, vice-presidente do
Sindicato dos gráficos, e o impressor Arlindo Rodrigues fizeram companhia aos
outros quatro. Dezenas de pessoas, entre colaboradores, funcionários, clientes
da gráfica e amigos foram presos ao chegar ao prédio. Eram colocados de frente
para uma parede e fotografados. O jornalista Paulo Roberto Ferreira, então
gerente da gráfica e diretor do jornal, conseguiu perceber a movimentação,
correu, avisou a imprensa e amigos, e voltou. Foi preso e levado para depor na
sede da PF.
“Eles chegaram sem mandado judicial e o Luiz
Maklouf Carvalho, que era editor do jornal, interceptou-os quando se
apresentaram e disse que não poderiam entrar por não terem mandado e houve uma
reação quando disseram que entrariam na marra. O Maklouf tentou impedi-los e
eles começaram a agredir o João, o Boução, e o Daniel Veiga, que também era
membro da SDDH”,
contou Paulo Roberto, em depoimento à Comissão da verdade do Sindicato
dos Jornalistas do Pará.
Criada pela
SDDH, a partir da doação de recursos, principalmente após o episódio de apreensão
da edição nº 5 do jornal, a gráfica Suyá era localizada na Rua Ó de Almeida,
bem no centro comercial de Belém, e tinha esse nome como homenagem a uma etnia
indígena. Apesar de ter sido criada para imprimir todos os materiais relativos
ao movimento de resistência ao regime, mantinha-se também com demandas
comerciais.
“Eu já sabia o que me esperava. Quando entrei,
estavam lá, além dos que já citei aqui, algemados, espancados, visivelmente
abatidos, o Oberdan Batista, que era o gerente, algemados junto com o Arlindo
que era um gráfico impressor e várias pessoas que tinham ido para lá (…)
(…) foi perguntado quem era o responsável.
Quando me apresentei, eles então me fizeram assinar um documento e fui levado
para a Polícia Federal junto com a secretária da gráfica. Lá, eu assinei um
documento com tudo que foi apreendido. Eles, então, quando chegou-se à Polícia Federal,
apresentaram um outro documento, infiltrando documento como se tivesse sido
encontrado dentro da gráfica. Um documento do PC do B. Eu não assinei o
documento porque já tinha assinado outro em que não constava isso. O inquérito
foi arquivado depois de algum tempo, não prosperou. O auditor militar não
aceitou, mas eu cheguei a ser, em função disso, junto com outros companheiros,
enquadrado na Lei de Segurança Nacional”,
contou Paulo Roberto.
Novo inquérito policial
militar foi aberto contra os jornalistas, diretores da SDDH e colaboradores do
jornal, que também foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Depois de
meses de apuração, o inquérito foi arquivado. Mas as perseguições continuaram.
A invasão da gráfica
Suyá foi uma das muitas situações vividas por jornalistas. Convocações para
depoimentos e esclarecimentos sobre reportagens publicadas eram comuns,
principalmente quando no periódico “Olha o passarinho”, que publicava fotos dos
agentes do regime.
“Foi o Olha o Passarinho 1, Olha o Passarinho 2,
que eram fotos sobre os canas, os agentes que nos espionavam. Eles nos
fotografando e nós os fotografando. Publicamos isso numa série de título que o
próprio Luiz Maklouf criou”,
relatou Paulo Roberto.
O clima de
perseguição era uma constante.
“Nós vivíamos um tempo de intimidação. Durante
muito tempo eu saía da minha casa para trabalhar e todo dia eu via uma pessoa
em uma moto, ao meu lado, atrás de mim, e eu julguei por muitos anos que era um
vizinho, que morava ali próximo, já era uma pessoa do meu convívio, não sabia o
nome. Só vim saber que essa pessoa era um agente, ‘cana’, quando ele estava no
dia da invasão da nossa gráfica Suyá. Vivíamos um medo permanente, vivíamos
muita insegurança em função de ter feito uma opção democrática, de lutar pela
democracia”,
depôs Paulo Roberto.
João Marques, o presidente
do Sindicato dos Jornalistas do Pará, foi um dos fundadores do Resistência. E,
na condição também de advogado, defendia as lideranças comunitárias que lutavam
pelo direito de morar na periferia de Belém. É de se enfatizar, ainda, o
trabalho do jornalista Raimundo José Pinto à frente do Sindicato dos
Jornalistas do Pará.
Quem assinava como
jornalista responsável pelo Resistência era o livreiro Raimundo Jinkings,
jornalista profissional, militante e dirigente do PCB. Na condição de bancário
do Banco da Amazônia, Jinkings foi vítima de perseguição política, logo após o
golpe militar de 1964. Demitido do banco, ele montou uma pequena livraria em
Belém que, aos poucos, foi crescendo e se tornou uma grande referência, uma
espécie de ponto de encontro da intelectualidade paraense. Ali se encontrava não
só o que era permitido pela censura, como também os livros que estavam na “lista
suja” do regime. Homem calmo e de bom diálogo, Jinkings conseguia ter entre
seus clientes até militares tidos como da linha dura. Com intensa militância no
Sindicato dos Jornalistas, vice-presidente da SDDH, Jinkings escrevia, com
frequência, artigos para o Resistência. Foi militante ativo do núcleo pela
anistia da SDDH e por isso mesmo pagou caro quando a entidade decidiu promover
um debate com Miguel Arraes, ex-governador de Pernambuco, preso e perseguido
político, que retornara do exílio poucos meses antes.
Na véspera da chegada de
Arraes a Belém, a porta da igreja de N. Sra. de Aparecida (onde funcionava a
SDDH) amanheceu pichada com a frase CCC (Comando de Caça aos Comunistas) e a
vidraça da Livraria Jinkings foi alvejada por uma rajada de balas, além de
pichada com a aterrorizante inscrição. O mesmo aconteceu na casa do presidente
da SDDH, o economista Jaime Teixeira.
Perseguições a
jornalistas como Emanoel Moura, Benedito Monteiro, Haroldo Sena e a tentativa
de homicídio contra Elias Pinto foram realçados pelo jornalista Manoel Dutra,
que em seu depoimento à Comissão da verdade do Sinjor-PA comentou os impactos
da ditadura militar na sua vida profissional e pessoal.
Membro da Academia
Paraense de Jornalismo, Manoel Bulcão, hoje aos 82 anos, começou a carreira na
Folha do Norte, em 1953, onde permaneceu até 1968. Durante a ditadura,
integrava a lista de inimigos do regime militar. Quando veio o AI-5, foi
proibido até de sair da redação. Considerado subversivo, foi preso seis vezes e
respondeu a três processos. Nem sabia por que, mas era só um general presidente
da República vir ao Pará, lá ele ia preso. Talvez por medida de segurança,
contou. Teve um dia em que, por falta de viatura, precisou desfilar a pé,
preso, na via pública, a caminho do quartel. Na rua, sua mulher testemunhou a
cena, evidentemente, muito sofrida.
Aconteceram
também momentos surreais: “Houve uma época em que eu, Raimundo Jinkings, Rui
Barata, Pedro Galvão, entre outros, precisávamos ir todo mês a Fortaleza, para
nos defender em um dos processos. E ainda pagávamos dos próprios bolsos.” (!) Rememorou
o dia em que, com o quartel – que era onde funciona hoje a Casa das Onze
Janelas – cheio de jornalistas presos numa sala, começaram uma seresta que só
acabou quando o comandante, incomodado com o barulho, quis saber “que esbórnia
era aquela” e mandou acabar na hora.
O depoimento de Bulcão à
Comissão da verdade do Sinjor-PA foi emocionado e emocionante, de uma história
que ainda será contada a partir dos fragmentos que se recolhe. Testemunho
ocular de um tempo de trevas em que a liberdade virou sonho e esperança.

Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, presidente da Academia Paraense de Jornalismo, membro da Abrajet, do IHGP e do IHGTap, editora do portal Uruá-Tapera.

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