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Dona Teodora Maria de Alcântara, 11 filhos, 31 netos e 11 tataranetos, nascida e criada na comunidade Japum, zona rural do município de Cachoeira do Arari, arquipélago do Marajó, se foi anteontem (14), aos declarados 124 anos, conforme certidão de nascimento lavrada em um cartório na antiga vila de Pinheiro, atual Icoaraci, distrito de Belém do Pará. Ela teria vindo à luz em 18 de agosto de 1900, mas nunca foi reconhecida pelo livro dos recordes como a mulher mais longeva do mundo. Isto porque a idade provavelmente era fruto de erro de registro. O filho mais velho, já falecido, teria nascido em 1934. O segundo, João Soares de Alcântara, ainda vivo, foi registrado em 1939, pelo que ela teria 34 anos no primeiro parto e quase 59 no nascimento da caçula, Raimunda Júlia, o que seria no mínimo incomum.

Analfabeta, sem título de eleitor, cega nos últimos anos, ela viveu em situação abaixo da linha da pobreza. Trabalhou duro a vida inteira, na roça, servindo de escrava para os outros, como costumava dizer. Comia o que havia para comer em sua humilde residência, em um ramal às margens da rodovia PA-154. 

Dona Teodora atravessou uma época de imensas transformações planetárias: as pandemias da gripe espanhola e Covid 19, as duas guerras mundiais, a construção e queda do muro de Berlim, o surgimento e a derrocada do império soviético, a Grande Depressão norte-americana, as viagens do homem à Lua, a invenção da televisão, o surgimento do celular e internet, crises mundiais, o Estado Novo, a construção de Brasília e o Distrito Federal, as ditaduras militares do Brasil e da América do Sul, as Constituições de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988. De tudo ela tomou conhecimento pelo rádio a pilha, que ligava aquela pobre mulher ao mundo.

Pois mesmo sem ter podido exercer os mais comezinhos direitos de cidadania, como ter documentos civis, estudar, votar e ter uma vida digna, Dona Teodora guardava dentro de si um espírito revolucionário que a fez, já em avançada idade, liderar uma manifestação popular marajoara em 2015 pedindo a extensão da energia elétrica até sua comunidade. Durante dois dias, ela não arredou pé do ramal interditado até que o protesto surtiu efeito e o serviço foi autorizado pela prefeitura de Cachoeira do Arari.

Em 2022 o INSS cortou a aposentadoria de trabalhadora rural da idosa. Todo mundo se comoveu com a história e tentou ajudar de alguma forma, inclusive a imprensa. Até que a situação chegou ao conhecimento do presidente do INSS, que determinou a regularização. Um funcionário do INSS telefonou para Dona Teodora, pedindo seus documentos. Os netos explicaram que ela não tinha. E então foram lá fazer fotos e finalmente ela conseguiu RG, CPF, certidão de nascimento, mas disseram que não precisava do título de eleitor.

Sem saber ler ou escrever, Dona Teodora deixou seu nome gravado na história. Quantas sofridas Teodoras existem no Marajó, no Pará, na Amazônia e no Brasil?

Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, membro da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Paraense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, editora geral do portal Uruá-Tapera e consultora da Alepa. Filiada ao Sinjor Pará, à Fenaj e à Fij.

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