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Uma vez vi o inferno – e até toquei nele.

Chamavam de inferno a uma mala de couro muito velha, guardada na casa da minha bisavó, na Generalíssimo, entre Nazaré e São Jerônymo. Iam queimá-la, no fundo do quintal, juntamente com outras “velharias”. Embora eu fosse criança, possuía grande interesse em relação ao passado. Pedi a favor do Inferno, implorei por sua clemência, mas não fui atendido.

Como eu não queria ver o inferno arder em fogos próprios, evitei acompanhar a cena, talvez me consolando com a perspectiva de um primo de minha avó que disse que, a partir de então, a prateleira mais alta da biblioteca da casa passaria a ser chamada de Inferno, além de passar a abrigar os livros que eram guardados na velha mala de couro.

Expliquemos o caso. Era um costume velho guardar livros “proibidos”, fossem eles “indexados” pela igreja ou interditados pelo Estado dentro de caixas ou malas meio reservadas, às quais se afixava a inscrição “Inferno”. Algumas pessoas possuíam dessas malas. Inclusive, pelo que me contaram, emprestavam, umas às outras, os seus infernos particulares, num circuito meio, digamos assim, diabólico. Volta e meia, os infernos circulavam em Belém.

O inferno da casa da minha bisa estava contido nessa mala velha. Os livros seriam salvos, mesmo porque eram livros de outros tempos e já não escandalizavam ou prejudicavam a alma de ninguém. A mala, ardeu.

Conto isso para ilustrar como a censura a livros é algo recorrente, contumaz e, sempre, termina por parecer ridícula e irrisória. Livros sempre acabam por ser lidos e as censuras acabam tendendo ao pitoresco.

Dois episódios recentes de censura ocorreram no Brasil, envolvendo os romances “O avesso da pele”, de Jeferson Tenório e “Outono da carne estranha”, do paraense Airton Souza. O livro de Tenório foi retirado de diversas escolas públicas de ensino médio, por decisão de secretarias estaduais de educação, após a diretora da Escola Estadual de Ensino Médio Ernesto Alves de Oliveira, em Santa Cruz do Sul (RS), alegar que a obra contém “vocabulário de baixo nível” e solicitar ao Ministério da Educação (MEC) o recolhimento dos exemplares.

Por sua vez, o livro de Souza, prêmio Sesc de Literatura, na categoria romance, do ano passado, passou a ser hostilizado por diretores e funcionários do Sesc após a leitura pública de um trecho da obra que relata a relação sexual entre dois homens, garimpeiros em Serra Pelada. Eu estava presente nesse momento de lançamento do livro, na Festa Literária de Paraty, a Flip, e posso dizer que nada justifica a censura a ele imposta. Para completar, o episódio levou à demissão do criador e organizador do prêmio, o também escritor Henrique Rodrigues, que se recusou a prejudicar a obra.

Toda censura tem raiva, tende ao despropositado e alcança o ridículo. Algumas censuras tentam dissimular interesses maiores, econômicos ou políticos, por meio de justificativas de ordem moral e, outras, efetivamente conservadoras, são produzidas em contextos de tanto ódio, ou medo da alteridade e das diferenças, que, simplesmente, apelam para justificativas ignóbeis.

No primeiro grupo temos exemplos clássicos: A “Enciclopédia” de Diderot e d’Alembert – a primeira enciclopédia– foi proibida na França em 1752, pelo rei Louis XV, após forte pressão dos jesuítas, que viam na obra uma ameaça para o quase monopólio da educação que tinham, então, em toda a cristandade. Outro clássico do Iluminismo censurado foi “Candide”, de Voltaire. A igreja católica considerou-o “pernicioso” e conseguiu dificultar sua impressão e circulação ao colocá-lo no seu Index. E foi além: em 1778, quando Voltaire morreu, o Vaticano proibiu a todas as igrejas da cristandade que rezassem missas em sua memória e interditou aos padres de encomendarem sua alma. Não adiantou muito, porque essas proibições fizeram a venda do livro crescer e, poucos anos mais tarde, em 1791, o corpo de Voltaire foi levado ao Panthéon – o sepulcro dos grandes homens franceses – com honras de chefe de Estado e acompanhado, nessa homenagem por milhares de pessoas.

Ainda nesse grupo, “As Flores do Mal”, de Baudelaire, fez com que o autor e se editor fossem processados pela Polícia de Paris logo depois do seu lançamento, em 1857. A justiça francesa ordenou a retirada de sete poemas da obra – os quais, felizmente, voltaram a integrá-la mais tarde. Embora bem mais tarde: em 1949.

No segundo grupo, o das censuras conservadoras meio delirantes, tem-se, por exemplo, o caso da censura a “Alice no país das maravilhas”, na China, em 1931, com o pretexto de fazia animais falarem tal como os humanos – o que seria “subversivo”. Por sua vez, a série de Conan Doyle sobre Sherlock Holmes foi proibida, na União Soviética, em 1929, com o pretexto que que fazia apologia ao espiritismo. “O senhor dos Anéis”, de Tolkien, não apenas foi proibido como também teve milhares de exemplares incinerados na cidade de Alamagordo, Novo México, Estados Unidos, sob o pretexto de “ter objetivos satânicos”. Na mesma dinâmica, “Frankenstein”, de Mary Shelley, foi censurado na África do Sul em 1956, em pleno regime do apartheid, porque sugeriria a “mestiçagem e a fusão de raças”.

Não tem como não rir.

Vejam o caso de “O chamado da selva”, de Jack London, que foi proibido na Itália fascista, que viu, nele, uma alegoria do fascismo… Na leitura dessa gente, o lobo, o personagem central do romance, que, de domesticado, vai regredindo, pouco a pouco, ao estado selvagem, seria uma metáfora do fascismo. Isso é muito engraçado, considerando que a obra fora lançada em 1903, muito antes do surgimento do fascismo…

Outra leitura meio psicótica foi feita em relação a “A fazenda dos animais”, de George Orwell, proibido no Quênia em 1943, com o pretexto de que seria uma crítica à corrupção do sistema político local – coisa que nem passou pela mente do autor.

Outras censuras foram mais diretas e sem pudor: “Robin Wood” foi proibido, no estado da Virgínia, Estados Unidos, em 1953, por “apologia ao comunismo”. Do mesmo modo, a saga de “Harry Potter”, de J. K. Rowling, foi interditada em muitas escolas das províncias canadenses da Terra Nova e de Ontário, à força de pressão de movimentos conservadores, por “promover a ideologia da bruxaria”.  

Fora esses casos, muitas e muitas obras foram censuradas sob pretextos de ordem moral e sexual. São exemplos “Feliz Ano Velho”, de Rubem Fonseca, censurado pelo regime militar brasileiro; “O amante de lady Chatterley”, de D. H. Lawrence; “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert e muitos outros.

Enfim, o “Inferno” da casa da minha bisavó teria muito que arder.

Considerando tudo isso, tenho três teses sobre a censura:

  1. Toda censura é uma ebulição do poder, uma arma política para manter fora do debate social as vozes, temas e questões sempre excluídas.
  2. Toda censura é uma patologia da comunicação: a crença pueril de que o processo social da leitura pode ser interrompido ou controlado.
  3. Toda de censura é uma tentação simplista, um infantilismo, e a história o comprova: livros censurados nunca deixaram de ser lidos.

Os tristes acontecimentos de censura que estão acontecendo no Brasil, mostram, em fim, duas coisas: 1) que a literatura incomoda e 2) que a literatura é uma arte de combate.

Vamos a ele.

Fábio Fonseca de Castro
Fábio Fonseca de Castro é professor da Unversidade Federal do Pará e atua nas áreas da sociologia da cultura e do desenvolvimento local. Como Fábio Horácio-Castro é autor do romance O Réptil Melancólico (Editora Record, 2021), prêmio Sesc de Literatura.

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