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A antiga Confraria do Pato Macho, atual Confraria do Pat Max,foi um grupo do qual fiz e faço parte. É mais uma dessas confrarias de amigos, mais ou menos secretas, que se reúnem de vez em quando, movidos tanto por vã solidariedade entre amigos como pela vontade de saber da vida alheia. É uma confraria composta por colegas bem humorados, todos homenscis-gênero mas nem todos eurocentralizados e nem todos heterossexuais, ainda que, em geral, criados num universo tal. 

Vejam, não estamos nos extremos, mas há, sempre, na dialética do mundo, a força gravitacional da cultura…

Entrando na meia idade, todos, menos, eu, entraram em crise. Em todo tipo de crise, da asmática à matrimonial. Eu, quanto a mim, creio que tinha mais o que fazer. E não digo por vã pretensão, nem por empáfia dos homens razoavelmente (minimamente) tranquilos, mas, simplesmente, porque, quando observo os outros, tendo a não pensar em mim. 

Acho que aprendemos isso quando estudamos sociologia – embora, quando estudamos antropologia, apresentemos a oposta tendência: a de pensar em como-nós-estamos-pensando-nos-outros-quando-pensamos-de-fato-em-nós-mesmos. Comoeu transito nessas duas ciências, fui de lá para cá e daqui pra lá, com o resultado de que acho muito chato passar por crises de consciência.

(Talvez, nunca tenha tido, efetivamente, demasiada paciência para comigo mesmo).

Mas gostaria de falar, na oportunidade de ter aberto esse assunto, a respeito de crises masculinas. Ou, melhor, da dialética das masculinidades reconstruídas num mundo que tenta e que pode, de fato, tornar-se melhor.

Mas, antes de falar disso, permitam que vos informe sobre o contexto da minha confraria.

O nome Pato Macho foi adotado para azucrinar com um colega que foi posto a correr do quintal da casa de sua namorada, quando tentava se aventurar a escalar as paredes da casa dessa moça, para chegar à sua varanda (no tempo de Romeu e Julieta falava-se “balcão”) numa atitude romântica (e meio patética) e que foi vazado de lá por um pato que, por evidência, era mais “macho” do que ele.

Esse episódio ocorreu muitos e muitos anos atrás. Há uns trinta e poucos anos atrás. 

Naquele tempo, a gente tinha certa consideração – creio que peremptória – por esse termo, “macho”, sinal de uma masculinidade que ainda estava sendo explorada, conhecida e, talvez, reconhecida por rapazes que, talvez na falta de identidade melhor, buscavam, inclusive por vias condenáveis, firmarem-se como homens num mundo que lhes pedia muito;inclusive que fossem homens.

Na verdade, a gente vivia numa sociedade muito intolerante, com poucas aberturas para a alteridade. Havíamos sido educados para as prestações de masculinidades tóxicas. 

Não se falava de amor, por exemplo. A ideia de desejo, por sua vez, era convertida em Einbahnstraßen, ou seja, ruas de mão única, e isso tudo resultava, evidentemente, em certo homoerotismo latente. Talvez não percebido. Ou, em alguns casos, dissimulado.

A literatura inglesa é pródiga ao descrever as confrarias masculinas, as Brotherhood of men das faculdades. Brotherhoodquer dizer irmandade. Quando estive na universidade de Cambridge saí para beber pints of beer, certa vez, com jovens estudantes de sociologia, todos homens, e percebi que o que se passava lá era quase o mesmo do que se passava nas minhas confrarias belemenses. Dias mais tarde, em Londres, depois de um interessantíssimo seminário na London School ofEconomics, saí para other pints of beer, com um grupo de professores aposentados, alguns na casa dos 90 anos – um deles, pelo que entendi, recebedor do prêmio Nobel de Economia – e todos, absolutamente todos, muito mais resistentes à tal da beer do que eu. E, igualmente, percebi que as masculinidades, tal lá, como cá, caminham juntas.

Mas voltemos à Confraria do Pato Macho. Devo revelar que se tratava de uma irmandade mais ou menos secreta. Esposas, noivas e namoradas – aos que as tinham – nunca foram admitidas. Havia regras tácitas e outras bastante claras. E pairava, no ar comum dos seus componentes, o drama oleríficodos patriarcalismos imaturos. Mas não se pense que se tratava de gente brutalizada. Falava-se de literatura, de arte e estimava-se o socialismo, dentre tangentes interesses a respeito de automóveis, engenharias e certos fervores maldissimulados pelo fascismo ou, não sei bem se menos pior, por tucanismos e peemedebismos paraensoides. 

E, decerto, falava-se bastante sobre mulheres e sobre o sexo;em geral confundindo as duas coisas.

Era apenas mais uma dessas confrarias de Belém. E era um mundo de homens. Tinham-me, os confrades, como um sócio fundador. Quando eu não estava absorto escutando o que os outros falavam, o que é meu estado natural – porque sou contemplativo do mundo, além de muito curioso e de espectador da comunicação alheia por dever de ofício – eu contava aos confrades as minhas histórias, lançava ao grupo as minhas frases, gastava o meu latim, provocava (gosto de provocar desordens narrativas) e fazia as perguntas metafísicas que gosto de fazer (tipo “Tu achas que a tua vida se passa rápida ou devagar?” e “Qual a importância do desejo na tua vida?”)

Porém, como disse, a partir de certo momento, tudo começou a mudar.

E acho que eu provoquei, um pouco, essa mudança.

Um dia perguntei ao grupo, ainda na segunda dose de minha Coca Zero, “Se vocês não fossem homens, o que seriam?”

Não obtive respostas. Apenas um “Lá vem ele de novo…”

E um longo silêncio… Um muito longo silêncio.

Não obstante, como por encantamento, meus confrades começaram a apresentar, nas sessões seguintes da Confraria, sintomas da mais absoluta crise de “meia” idade. Afinal, quase todos andamos pela casa dos 50 anos. Como antes disse, meus confrades passaram a ter crises, asmáticas e matrimoniais, sim, mas também de gênero, de grau, de gosto, de política, de fé e de consciência.

Evidentemente, não foi minha vã provocação que produziu tal efeito. Esse “como por encantamento”, acima, é só um charme que faço escrevendo esse texto. As coisas todas já estavam lá. E sempre estiveram.

Em meu ponto de vista, as reuniões da Confraria do Pato Macho tornaram-se chatíssimas. Tornaram-se, a certo momento, uma ridícula, caótica e insólita terapia coletiva de homens. De homens que adquiriam, à força dos tempos atuais, alguma consciência da sua masculinidade tóxica e do ridículo papel masculino que buscaram desempenhar, com e sem sucesso, em todos os casos, ao longo de cinco décadas de vida.

Muito tempo. Muito tempo desempenhando papeis sociais que nunca estiveram à altura do que, de fato, poderiam ser, não fosse a intoxicação patriarcal que forja a pobre e simples imagem que os homens fazem do que são, enquanto tais.

Nesse contexto, escutei histórias tristes, crises de consciência, interjeições de autosuspeição, culpabilidades ressentidas, diagnoses viscerais, pudores inconfessos, incompetências desveladas, pecados febris, saudades maculadas, desejos inconclusos, fraturas expostas, ignorâncias sensibilizadas, máculas reservadas, vontades imaturas e ressentimentos insustentáveis em relação a velhas namoradas.

Tudo, enfim, que cai da casa de caba sacudida sob a fumaça.

Sob a fumaça autorreflexiva do ser, do ser que é um homem, que se percebe num mundo que muda.

E agora acontece a coisa engraçada que sempre acontece quando se acaba de contar uma história. E que sinaliza o fim dessa história: Eu, fatigado, cansado de tanta chateação, sugeri a meus confrades, num ato de ironia que ninguém entendeu e que, na verdade, tomaram por solução:

“E que tal, meus amigos, se mudarmos o nome da nossa Confraria? E se adotássemos a norma do gênero neutro? Eu acho que todos nós nos sentiríamos menos culpados de tudo isso que estamos (que vocês estão, quis eu dizer, mas tive pudor) dizendo nestes últimos meses?”

“Gênero neutro? O que é isso?”, indagou um confrade.

“Lá vem ele de novo…”, comentou, ao fim da mesa, um outro confrade.

E, um terceiro confrade, esclareceu: “É não dizer todos, por exemplos, mas todos, todas e todxs”.

“Todes?”

“Sim, imbecil, mas todes com x, porque x é x e todo mundo sabe que x é tudo que se quiser que seja, daqui até o Cabo da Boa Esperança, da metafísica à equação de segundo grau, entendeste?”.

Os confrades refletiram sobre a proposição e deliberaram no devido tempo – penso que acreditando que, assim, livravam-se do sentimento de desacordo entre suas consciências e as realidades do vasto mundo.

De minha parte, devo mencionar que odeio quando minhas simples ironias se tornam fatos discursivos com pretensões políticas. 

Ou com efeitos terapêuticos.

Porém, foi assim, que a Confraria do Pato Macho tornou-se, no alvorecer de 2025, numa Belém que muda e que quer mudar, a Confraria do Pat Max. 

(Ah, pronuncia-se Pét Méxi).

Fábio Fonseca de Castro
Fábio Fonseca de Castro é professor da Unversidade Federal do Pará e atua nas áreas da sociologia da cultura e do desenvolvimento local. Como Fábio Horácio-Castro é autor do romance O Réptil Melancólico (Editora Record, 2021), prêmio Sesc de Literatura.

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