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Dona Maria vivia há 42 anos na casa de uma família em Belém do Pará, onde era submetida a jornada exaustiva em condições degradantes. Trabalhava ali desde 1979 como empregada doméstica, sem qualquer registro oficial ou benefício trabalhista e previdenciário: nunca tirou férias nem descanso remunerado, muito menos recebia décimo-terceiro salário e jamais foram recolhidas as parcelas relativas ao INSS e FGTS. A pobre mulher sequer tinha documentos, o que a impedia até de ter acesso ao SUS. Ademais, as suas condições de alojamento eram precárias, na laje da residência, com degraus irregulares e diminutos, sem local para banho e com muita umidade. Sobreveio a pandemia, ela cuidou de uma pessoa que veio a falecer, vítima de Covid-19, e mesmo apresentando todos os sintomas da doença nunca foi levada pelo empregador para ser vacinada ou encaminhada a locais de assistência à saúde. Em abril do ano passado, o Ministério Público do Trabalho no Pará recebeu denúncia acerca da situação da idosa, de 62 anos. Diante da gravidade dos fatos, ajuizou ação cautelar a fim de obter autorização judicial para entrar na residência e abriu inquérito para investigar. Além do MPT, a Superintendência Regional do Trabalho (SRTE/PA) e a Polícia Federal participaram da fiscalização.

Uma ação civil pública foi ajuizada em coautoria do MPT PA/AP e Defensoria Pública da União e resultou em acordo homologado perante a 4ª Vara do Trabalho de Belém. A trabalhadora vai receber R$ 100 mil a título de indenização.

O Brasil herdou do passado colonial, imperial e escravagista uma sociedade profundamente desigual e um racismo estrutural nunca resolvidos. Os relatos são chocantes. De flagrante desrespeito à condição do ser humano. E acontecem todos os dias, sob o manto de aparente normalidade. Talheres, copos e pratos separados, refeição diferenciada e de baixa qualidade, proibição de acesso a elevador, obrigatoriedade de uso de fardamento e de dormir na casa do empregador, assédio sexual e moral, violência física e psicológica pontuam essa relação laboral que no mais das vezes começa ainda na mais tenra infância, quando meninas são “encomendadas” do interior, a pretexto de terem a oportunidade de estudar na capital. O trabalho doméstico infantil é invisibilizado e mascarado pela alegação de salvar a criança da miséria.

Majoritariamente negras, crianças são obrigadas a cuidar de outras crianças menores. São espancadas pelos patrões, muitas vezes estupradas, torturadas e mortas. As que conseguem casar não têm vida própria, não acompanham o crescimento dos filhos, não têm chance de sentar e conversar com eles, de orientar para que não se envolvam com algo errado.

Conforme o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2019 mais de seis milhões de pessoas já atuavam nos serviços domésticos. Desse total, 92% são mulheres.

Em junho do ano passado, uma empregada doméstica foi resgatada de condições análogas à escravidão em São José dos Campos (SP), em operação conjunta do MPT, Secretaria de Inspeção do Trabalho e PF. A mulher, à época com 46 anos de idade, passou mais da metade da vida no emprego, tendo começado a trabalhar aos 13 anos de idade para substituir a mãe nas funções domésticas da casa. Não recebia salário e trabalhava de segunda a domingo, sem folgas ou férias. O inquérito também indicou que ela sofria restrições de liberdade e era impedida de conviver socialmente durante o tempo que trabalhou no local.

A história de Madalena, resgatada em novembro de 2020, virou comoção nacional. Ela começou a trabalhar aos oito anos de idade para uma família abastada de Patos de Minas (MG). Não tinha registro, não recebia salário, não gozava férias ou descansos semanais. Viveu reclusa e sob a vigilância dos patrões por mais de trinta anos.

Em janeiro deste ano, em Mossoró (RN), outra mulher foi resgatada após 32 anos de trabalho como empregada doméstica, desde a adolescência. Em troca da dura jornada recebia moradia, alimentação e vestuário. Nunca teve salário ou gozou férias e descansos semanais. Trabalhava em condições degradantes, com jornadas exaustivas, além de sofrer abuso e assédio sexual do empregador.

A mesma operação também resgatou em Natal uma trabalhadora analfabeta, com 52 anos de idade, que permanecia 24 horas/dia, sete dias por semana, à disposição da empregadora, inclusive à noite, dormindo num colchão, ao lado dela. Descansava apenas a cada 15 dias, trabalhava nos feriados e recebia só cerca de R$ 500 por mês.

Mais duas trabalhadoras foram resgatadas, na Paraíba e no Rio Grande do Sul, em situações muito similares. Em Campina Grande (PB), uma mulher de 57 anos, supostamente tratada como filha, era obrigada a trabalhar sob a falsa alegação de que “era da família” e seria adotada. Em Campo Bom (RS), a vítima, com 55 anos e deficiência intelectual, foi resgatada após 40 anos trabalhando sem salário e sob xingamentos, agressões físicas e ameaças, dentro de casa e na frente dos vizinhos.

A Convenção nº 182 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada e adotada pelo Brasil em 2000, por meio do Decreto 6.481/2008, proíbe as piores formas de trabalho infantil e determina a ação imediata dos estados-membros para sua eliminação. A “Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil” (conhecida como Lista TIP), classifica as atividades e locais prejudiciais à saúde, à segurança e à moral, prevendo mais de 90 tipos de trabalho de risco. Entre tais atividades, o item 76 indica o trabalho doméstico, com a descrição dos prováveis riscos ocupacionais e repercussões à saúde. Em sintonia com a OIT, a Lei Complementar nº 150, de 1º de junho de 2015, estabelece que é vedada a contratação de menores de 18 anos para o desempenho de trabalho doméstico.

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