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Li recentemente o primeiro livro da Tetralogia Napolitana, da autora italiana que assina suas obras como Elena Ferrante, pseudônimo sob o qual mantém em absoluto sigilo a sua verdadeira identidade. Avessa ao sucesso e aos holofotes que ele acende, a escritora é radicalmente reclusa, concede raras entrevistas, sempre por escrito, e no mundo literário não se tem notícia de muitos que a tenham visto pessoalmente ou sequer ouvido sua voz.

A coletânea, como o próprio nome diz, é composta por quatro volumes – A amiga genial (2012), História do novo sobrenome (2013), História de quem foge e de quem fica (2014) e História da menina perdida (2015) e trata da vida de duas amigas muito íntimas – Elena Greco (Lenu) e Rafaella Cerullo (Lila), habitantes dos subúrbios de Nápoles, capital da região da Campânia, no sul da Itália, desde a infância até a senectude.

O livro inicial é belíssimo, escrito em linguagem coloquial, fácil e prazeroso de ler. A densidade do enredo, a construção dos personagens, o encadeamento da trama e os pequenos mistérios que vão sendo esclarecidos pouco a pouco, tudo isso contribui para a submersão do leitor no universo descrito, tornando suaves as trezentas e trinta e uma páginas, em meio às quais nos vemos torcendo para que namoros deem certo, negócios prosperem, rixas terminem e finais felizes se tornem possíveis.

É tamanha a intimidade criada com os protagonistas, naturalmente, que chega a parecer que estamos num daqueles grandes almoços de família, ouvindo e contando as peripécias de tios, primos, cunhados e afins, uns próximos outros distantes, alguns estimados outros nem tanto, fazendo uso do inalienável direito que o parentesco nos outorga: o de falar da vida alheia.

Todavia, não é o romance o mote principal desta crônica, não é dele que quero cuidar. Em verdade ele foi apenas o fio condutor da sensação que me consternou nos últimos dias, tornando melancólico e cinzento o encerrar da semana. Numa determinada passagem, Elena resolve inscrever-se num curso de teologia à distância, e em razão dele se vê tomada por dúvidas angustiantes sobre o Espírito Santo. Ao partilhar suas querelas com Lila, sempre mais pragmática, Lenu acaba ouvindo um sonoro e retumbante carão: – “Você ainda perde tempo com essas coisas, Lenu? Nós estamos voando sobre uma bola de fogo. A parte que resfriou flutua sobre a lava. Sobre esta construímos prédios, pontes e estradas. De vez em quando a lava sai do Vesúvio ou então provoca um terremoto que destrói tudo. Há micróbios por todo lado que noz fazem adoecer e morrer. Há guerras. Há uma miséria ao redor que nos torna todos ruins. A cada segundo pode acontecer alguma coisa que lhe fará sofrer de uma maneira que nunca haverá lágrimas suficientes. E você faz o que? Um curso de teologia em que se esforça para entender o que é o Espírito Santo? Deixa pra lá, foi o Diabo que inventou o mundo, não o Pai, o Filho e o Espírito Santo.”

O trecho me chamou a atenção, sublinhei-o com a inseparável marca-texto e percebi que ficaria martelando na minha cabeça, como a ecoar aquele vaticínio cruel: “…há uma miséria ao redor que nos torna todos ruins…”

Na manhã seguinte precisei transitar por Belém, cumprindo trajetos que me são habituais. No tradicional circuito casa-escritório-clientes-cartórios-escritório-casa, estendido por não mais que três ou quatro bairros da cidade, todos centrais ou próximos ao centro, dotados de razoável infraestrutura, encontrei ao redor boa parte daquela miséria mencionada por Lila, exatamente a que nos torna todos ruins, senão cúmplices, ao menos coniventes com o flagelo social que salta aos olhos a cada esquina, em cada semáforo, debaixo de tantas marquises.

Há tempos já não é preciso circular pela periferia ou pelas regiões mais precárias e desassistidas para encontrar, transmutados em realidade crua e palpável, materializados em homens, mulheres e crianças, os dados estatísticos assustadores acerca da pobreza que assola a maior cidade da Amazônia brasileira, da sua favelização. Muito ao contrário, basta margear os endereços mais nobres, basta enveredar pelo comércio, em especial pelas Ruas João Alfredo e Santo Antônio durante o dia, ou pela Avenida Presidente Vargas, durante a noite, para colidir com um cenário desolador – fome, indigência, desabrigo e carência.

E não adianta expiar a culpa esmolando a primeira família de imigrantes venezuelanos, quiçá atendendo os pedidos de socorro lançados no primeiro cartaz de papelão. Logo adiante haverá mais, poucos metros depois outros meninos e meninas, por vezes seminus, estarão ao colo de mães novamente grávidas, visivelmente desnutridos e doentes.

É grave, muito grave a ponto de suscitar dúvidas fundamentais. Em A amiga genial a adolescente Lila diz à amiga Lenu que quem inventou o mundo não foi Deus, e sim o Diabo. Na (minha) vida real eu seria injusto com Deus se chegasse a tanto, e ingrato também. Considerando que moro com dignidade e conforto, faço três refeições ao dia, crio meus filhos sem que algo lhes falte e gozo de boa saúde, jamais poderia atribuir à generosidade do anjo caído todos esses privilégios, mas basta olhar pelo vidro do carro para perceber um outro mundo a nos rodear, paralelo e sombrio, em que o capiroto parece ter metido o dedo.

Como dizia o genial Saramago: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Lila Cerullo tinha razão, somos todos ruins.

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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