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Às vésperas da cerimônia oficial de abertura das Olimpíadas de Paris 2024, um assunto parece dominar as conversas em todos os cantos do Brasil, presencialmente e nas redes sociais, e não tem nada a ver com as expectativas sobre a performance dos atletas: os uniformes da delegação brasileira, tanto os para a cerimônia de abertura, confeccionados pela Riachuelo, quanto os patrocinados pela Puma, para as competições. A parceria entre a Riachuelo e o Comitê Olímpico do Brasil (COB) foi feita em 2021 e clamava o objetivo de refletir a identidade nacional com um enfoque em sustentabilidade e valorização do artesanato local. Entretanto, o design final dos uniformes claramente desagradaram a maioria das pessoas. A bacharela em moda e em letras, mestra e doutora em artes, representante de moda e design do Conselho Municipal de Políticas Culturais da Prefeitura de Belém e professora da Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará Graziela Ribeiro acredita que existem muitas camadas de reflexões, para além da estética, sobre a roupa da delegação brasileira nas Olimpíadas.

“Uma delas é o fato de ter sido criada por uma empresa tão problemática, como a Riachuelo. Em uma pequena busca pelo histórico da marca, são diversos casos questionáveis, alguns envolvem precarização e tratamento inadequado aos funcionários, tanto nos postos de venda quanto da própria confecção, o que torna contraditório o argumento de sustentabilidade, tendo em vista que a qualidade do ambiente de trabalho é um dos pilares do sistema de produção sustentável. Mais grave é concluir que, em pleno ano de 2024, depois de tudo o que tem sido abordado e que o mundo tenta mudar dentro do sistema produtivo da moda, no que diz respeito aos seus impactos ambientais, ver que o Brasil não compreende a incompatibilidade de se pensar uma moda ética, que já não é novidade, com o sistema de moda rápida, na qual se insere a Riachuelo.”

A Riachuelo apresentou ao COB uma proposta sustentável, de utilizar tecidos reciclados e bordados artesanais feitos por bordadeiras de Timbaúba dos Batistas, no Rio Grande do Norte, porém não há clareza sobre como esses processos realmente impactam a comunidade e o meio ambiente. E, claramente, com exceção dos casacos bordados com exemplares da fauna e flora brasileira, as roupas não poderiam ser mais generalistas e sem identidade cultural. Nas redes sociais o comentário da maioria esmagadora das pessoas é que parece uma “moda culto”, em referência a um tipo de roupa comumente atribuído a frequentadores das igrejas evangélicas neopentecostais. 

Portanto, não parece ser coincidência que Flávio Rocha, filho de Nevaldo Rocha, fundador do grupo Guararapes, presidente do conselho de administração da Riachuelo, tenha uma ligação conhecida com igrejas evangélicas. A Riachuelo é patrocinadora de eventos religiosos como a “Marcha para Jesus”, um dos maiores eventos evangélicos do Brasil e Rocha é conhecido por suas opiniões conservadoras e liberais no campo econômico, que ressoam com as bancadas evangélicas nas assembleias legislativas, câmara e congresso, tanto que lançou uma pré-candidatura à presidência em 2018, com o apoio das comunidades evangélicas. Em 2016, no calor dos protestos que defendiam o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, uma loja da Riachuelo localizada na Avenida Paulista montou uma vitrine com manequins em verde, amarelo, azul e branco e, talvez, tenha criado a “moda” na qual as cores nacionais foram apropriadas por extremistas de direita. No dia 13 de março, um domingo, a Riachuelo tomou uma medida ainda mais direta ao liberar o acesso ao terraço da loja para manifestantes e distribuindo aos que conseguiram acesso guarda-chuvas estampados com a palavra “impeachment”.

Foto: Divulgação

Nos últimos meses, outra polêmica envolvendo a Riachuelo tem tomado as redes sociais, principalmente as da Amazônia: a utilização das tipografias das letras de barco, “assinadas” por um designer paulista. Em maio, a jornalista Trisha Guimarães, em seu Instagram @acasacomoelae, denunciou a utilização dos letreiros usados nas embarcações tradicionais da Amazônia numa coleção lançada pela empresa sem o devido referenciamento. Renan d’Oliveira, publicitário e diretor de arte, mestre em Artes pela Universidade Federal do Pará, lamenta a apropriação cultural:

“É muito triste porque as pessoas acabam perdendo uma oportunidade de adquirir conhecimento sobre outras culturas. A mistura de imagens acaba não educando quem tem que ser educado, porque na feita que tu colocas Pato Donald, o Mickey, símbolos do capitalismo há mais de cem anos, um ícone do estadunidense, acaba sendo uma luta muito desigual. Como estão há muito inseridos na cultura mundial, isso acaba desmerecendo, desvalorizando o trabalho dos abridores de letra porque vão vincular a tipografia dessas pessoas, desses trabalhadores e trabalhadoras que vivem na borda da sociedade, com algo que é da cultura estadunidense. Aí tu imaginas: a Riachuelo, uma loja uma loja varejista, que vende para todo tipo de classe social – ignorância não tem classe social, como sabemos -, então chega até pessoas desavisadas que vão ter um primeiro contato através dessa coleção com esses itens e que vai acabar vinculando esses símbolos da nossa cultura, da nossa identidade, com o que é de fora.”

Imagem: Riachuelo

D’Oliveira acredita que os brasileiros perdem muitas oportunidades, já que seria possível fazer não só uma homenagem, mas também impulsionar o trabalho e tradição dos abridores de letra da Amazônia e dos abridores de letras de Pernambuco: “então a gente acaba com a cultura popular em troca do capital, sendo que no resto do mundo as coisas não são assim, a indústria e o comércio protegem a produção nacional tradicional. Mais uma vez, parece que a classe empresarial do nosso país luta contra a nossa própria cultura. Como é que essas mulheres e homens vão brigar na justiça com a Riachuelo para cobrar direitos autorais? Vamos dizer que um coletivo de abridores de letras da Amazônia contrata um advogado para enfim ir atrás dos direitos deles: seria uma briga muito desleal, ter que mobilizar toda a opinião pública de um país continental como Brasil, mesmo com a internet facilitando, sabemos que é uma briga complicada pois até mesmo dentro do de do campo progressista não é todo mundo que endossa essa pauta”.

Ele ressalta que o trabalho dos abridores de letra “é poética pura, o ato do da existência dos abridores de letras é poesia, a técnica que eles usam é pura poesia. Como João de Jesus Paes Loureiro bem fala no livro ‘A Cultura Amazônica: uma poética do imaginário’, essas letras têm um poder muito mais decorativo do que uma função de comunicação textual, então estamos falando de obras de arte, de expressões artísticas que foram plagiadas. O meio da arte visuais infelizmente ainda é extremamente elitista e só agora, nos últimos anos, é que essas pessoas, os ribeirinhos, estão tendo algum reconhecimento como os artistas que são e um pouco mais de espaço, aos poucos, fazendo exposições, então este tipo de atitude regride as conquistas deles”.

Fica então bastante difícil não relacionar o posicionamento político do administrador da marca e o histórico de apropriação cultural e falta de respeito com as práticas tradicionais com a imposição de um traje que, além de não refletir a pluralidade cultural brasileira, tenta apagá-las numa tentativa de moldar uma imagem nacional que é conveniente aos interesses financeiros e políticos da Riachuelo. A indumentária não é e nunca foi apenas uma questão estética, ela desempenha várias funções sociais importantes que refletem e influenciam a identidade, o status, e a dinâmica social de indivíduos e grupos, funcionando como uma forma de comunicação não-verbal e desempenhando um papel crucial em rituais e cerimônias, como é o caso da abertura das Olimpíadas. É uma pena que o Brasil tenha deixado escapar a oportunidade de mostrar a originalidade de nossa cultura de moda em Paris 2024, justamente no evento que promete ser revolucionário na história olímpica ao “fugir” das delimitações de um estádio e ocupar as ruas e rio da cidade.

Mas a polêmica envolvendo o vestuário e a delegação brasileira não para pelo uniforme da cerimônia de abertura. O atleta José Fernando Ferreira Santana, conhecido como Balotelli, usou as redes sociais ao expressar sua frustração com o kit fornecido pela Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt), que é patrocinado pela Puma, para sua participação nos Jogos Olímpicos de Paris, que continha apenas uma regata, um macaquinho e um short, ou seja, três peças de roupa para as dez provas que vai disputar, e que não incluía sequer os calçados específicos necessários para o decatlo, modalidade em que compete. Balotelli explicou que usa sete tipos diferentes de sapatilhas e que teria que comprá-las do próprio bolso. A situação o obrigaria também a lavar seu uniforme entre as etapas da competição.

Foto: Instagram / Divulgação

“Vocês não têm ideia do quanto foi broxante receber o material da seleção. Sempre achei que, nas Olimpíadas, receberíamos uma mala de materiais, com tênis, roupas e sapatilhas, mas parece que não é bem assim para nós. Estou indo para os jogos olímpicos sem patrocínio de marca esportiva, ou seja, vou investir do meu dinheiro para comprar as sapatilhas”, desabafou o atleta, que compartilhou uma foto do kit de um atleta espanhol, repleto de roupas e equipamentos, lamentando a disparidade”.

Balotelli, de 25 anos, é o único representante brasileiro no decatlo e o melhor sul-americano da atualidade, tendo conquistado a prata nos Jogos Pan-Americanos de 2023 em Santiago, no Chile. Sua prova, uma das mais tradicionais dos Jogos Olímpicos, inclui dez modalidades: 100 metros rasos, salto em distância, arremesso de peso, salto em altura, 400 metros rasos, 110 metros com barreiras, lançamento de disco, salto com vara, lançamento de dardo e 1.500 metros. A repercussão do seu desabafo foi grande e, no dia seguinte, ele anunciou que o problema havia sido solucionado. Em um vídeo no Instagram, ele agradeceu às doações recebidas através de uma vaquinha virtual que organizou para comprar as sapatilhas e outros itens necessários.

“Muita coisa mudou por conta de um desabafo muito sincero que fiz nas redes sociais. Estou aqui para falar que está tudo certo, já foi resolvido o problema com as sapatilhas, o problema com o uniforme. As sapatilhas foram doadas por várias pessoas, os próprios responsáveis pela seleção brasileira também fizeram a entrega do material extra e a entrega de algumas sapatilhas e um tênis.” O atleta aproveitou para agradecer a todos que o apoiaram e reafirmou seu foco na competição. “Tenho a Olimpíada, que é a competição mais importante da minha vida, em menos de 10 dias. Agradeço a todo mundo que tem se solidarizado comigo nessa causa”, concluiu. Ele informou que manterá a vaquinha virtual aberta para adquirir mais materiais visando futuras competições.

Foto: Instagram / Divulgação

Balotelli não foi o único a expor nas redes sociais sua insatisfação com os uniformes que foram fornecidos pela Puma. A atleta de lançamento de disco Izabela da Silva recebeu um kit de uniformes inteiramente masculinos para competir nos Jogos Olímpicos. Ela explicou que, por ter um corpo maior do que o padrão da delegação brasileira, solicitou algumas peças masculinas. “Acabei de receber os uniformes que vou usar nas Olimpíadas, estou bem puta, bem chateada, porque eu pedi algumas peças masculinas e me deram todas as masculinas. Femininas eles não me deram nada. Ganhei 19 peças, contando com a mochila, os bonés, e feminino ganha 30 peças. Sabe como isso é triste? É demais de triste, pegar seu uniforme da Puma para a competição e eles fazerem uma dessa falando que não tem numeração. Não dá nem para rir de nervoso de tanta tristeza. Só vai até o M? Faz um pouco maior”, reclamou a atleta.

“Toda seleção é essa sacanagem. Só porque eu sou um pouco maior, e daí? Pede maior. É decepcionante uma coisa dessa acontecer. Não é possível não conseguir fazer uniforme um pouco maior feminino, só conseguir fazer masculino. Vou competir com roupa masculina, porque até me sinto mais confortável, mas top, as outras paradas, feminino, não vem nada para mim. Eu tô muito chateada”.

Em resposta, a Puma e a CBAt emitiram um comunicado conjunto que parece não condizer com a realidade enfrentada pelas atletas brasileiras: “Lamentamos o ocorrido com a atleta Izabela Rodrigues da Silva na entrega dos kits de competição e, em conjunto com a Confederação Brasileira de Atletismo, estamos em contato com a atleta para solucionar o caso da melhor forma possível. Aproveitamos a oportunidade para reforçar que temos um compromisso de longo prazo com o esporte e fazemos o nosso melhor para oferecer produtos de excelência à performance dos(as) atletas. Destacamos ainda que cada prova de atletismo possui uma quantidade diferente de peças do uniforme que varia de acordo com a necessidade esportiva e essa quantidade independe do gênero do(a) atleta. Por fim, é importante destacar que desenvolvemos produtos e uniformes que atendem a corpos diversos, e especificamente em vestuário, do PP ao 4GG.”

Foto: Wagner Carmo / CBAt / Divulgação

Graziela Ribeiro acrescenta que

“infelizmente no Brasil há a predominância de uma mentalidade preconceituosa em relação ao vestir, por isso não há investimento em produção de conhecimento tecnológico nem aperfeiçoamento profissional, tudo o que chega na indústria, antes passa por etapas de pesquisa. Muito se discute hoje sobre moda inclusiva e ergonomia, meios de produção sustentáveis, desenvolvimento e aplicação de novos materiais têxteis, porém isso acaba circulando no âmbito acadêmico e as inovações propostas não chegam no público. Aliado a isso vemos também um problema histórico, o descaso com os esportes, principalmente nas modalidades que não são futebol. Ainda acrescento a mentalidade das empresas patrocinadoras de atletas, que é muito próxima dos patrocinadores no setor cultural, agem como se estivesse fazendo um favor ao patrocinado, não enxergam aquele momento que poderia ser uma vitrine dos seus produtos, uma forma de expor, de maneira aplicada, as inovações. Imagina quantas peças de roupas poderiam ser expostas em um evento de impacto mundial, caso tivessem enviado um maior número de modelos ao atleta, ou sobre a ergonomia dos trajes femininos no tamanho adequado e maiores para a outra atleta? Então é um conjunto de fatores. É triste porque o setor de vestuário tem alto impacto na economia do país”.

As competições das Olimpíadas de Paris começaram no último dia 24 e todos os atletas merecem, diante tanto sacrifício e dedicação para chegarem ao nível de excelência necessário para a classificação, mais do que a nossa torcida: a exigência para que os patrocinadores, que lucram milhões, bilhões com a exposição que recebem em um evento da magnitude dos jogos olímpicos, deem as condições necessárias para o sucesso de todos os esportes – e não só do futebol masculino, que sequer classificou neste ano, mesmo com todo o dinheiro envolvido na modalidade. Que 2024 seja o último ano em que tantos atletas brasileiros obtenham sucesso unicamente através da raça, quase como um milagre, e que, desde já, sejam fornecidas as premissas e o respeito para que nos orgulhem com suas conquistas em Los Angeles, em 2028.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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