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Muitos devem lembrar de um funk carioca, “um tapinha não dói”, lançado por MC Naldinho e MC Beth, que virou hit em 2001 e a população cantava com incrível naturalidade. Depois dele, continuaram surgindo outros com o mesmo cunho que também fizeram enorme sucesso. Atualmente, uma parcela da sociedade começa a se questionar sobre o tal ‘tapinha indolor’ e não mais aceitar como natural as agressões dentro das relações. Desse despertar, vimos surgir a expressão “relacionamento tóxico”.

Freud em 1921 já usava o termo “amor tóxico” ao observar relações em que havia supremacia do objeto ideal. Nessas relações há uma assimetria entre as pessoas, onde um tenta a todo instante sobrepor seu poder de forma que o outro além de se sentir refém, perde a capacidade de autopercepção e passa a aceitar abusos físico, verbal e emocional. Essas manifestações abusivas, não raro, são percebidas em um período relativamente curto apartir do ínicio do relacionamento, em frases como: “você é burrinha”, “deixa de ser louca”, “rídiculo isso que você disse” ou ainda com um ‘empurãozinho’, um ‘tapinha’ e outras coisas do tipo.  Entender que isso é desrespeitoso, que não é mimimi e muito menos natural, é o primeiro indicativo de que algo vai mal e precisa de ajuda.

O comportamento do abusador segue um padrão já observado e estudado. Começa, em geral, com o isolamento e as tentativas de controle de comportamento do outro, passando em seguida à pequenas ofensas que vão evoluindo até chegar às violências física, sexual, verbal e psicológica; para logo em seguida pedir perdão, justificar-se dizendo que a culpa foi da vítima e, após um rosário de inúmeras promessas, conseguir a reconciliação. Restabelecido o vínculo, o ciclo recomeça.

Sair desse tipo de relação, não é simples. A vítima tem dificuldade de ver que está num relacionamento que abala sua saúde física e mental. Não raramente, ela própria justifica os atos dizendo que o outro estava nervoso, que não foi por mal ou que é porque sente ciúmes por amar demais. O abusador humilha de todas as formas, manda mil vezes calar a boca e depois vem sedutoramente com um “eu te amo”. Por isso, se alguém identifica que existe um acúmulo de aborrecimentos na relação; tentativas de diminuir a autoestima; brigas frequentes; cerceamento da maneira de ser e se comportar; uso do ciúme como sinal de amor e proteção quando na verdade a pessoa vive sob suspeita, fruto da falta de confiança; constatação de que não há felicidade na relação e a não existência de apoio para os seus planos e metas, então, é hora de se perguntar de forma racional, o que se quer de uma relação.

É imperioso apontarmos a conexão que existe entre a questão do medo da perda do outro nos relacionamentos tóxicos e a psicopatologia da perda – de forma ainda mais específica – ao padrão da melancolia enquanto luto impossível. A pessoa perde a capacidade de estabelecer um diálogo interno e movimentar-se nos altos e baixos do jogo amoroso. Então, se ela acredita que tem a posse do outro, sente-se num estado de euforia fronteiriço à mania, no qual o Eu vive uma relação simbiótica com o ideal do Eu. Mas, diante da menor possibilidade de perda do outro, o caos se instala.

Então, o que é isso que faz de uns tirano e de outros vassalo? O pathos (paixão/doença) está dentre as modalidades de adicções que mais se evidência nos estudos clínicos. Revela-se de forma categórica no “vício pelo outro”. É como estar prisioneiro e completamente paralisado. Estão sempre temerosos de perder seu objeto ideal, por isso, criam uma dependência com traços bastante singulares, que apontam indubitavelmente  para uma doença.

Joyce McDougall, psicanalista francesa, ao analisar as adicções, usa como padrão o “vício no outro”. A característica compulsiva – daí usar o termo “relação adictiva” – faz com que a “vitima” seja a pessoa com a obrigação de proporcionar felicidade, caso contrário, será enfaticamente acusada das desgraças da vida do adicto. Para Joyce, o viciado traz um desejo da infância de ser o “dono do mundo” e isso só será factível se esse desejo se corporificar na realidade exterior e for reforçado pelo outro, constituindo-se em uma dependência permanente e dolorosa. Outro detalhe muito interessante é que nos relacionamentos adictivos o “outro”, que permite inconscientemente essa manipulação e vassalagem, também encontra uma forma de solucionar questões análogas. Sem ter consciência eles identificam um no outro quem é capaz de desempenhar com habilidade o papel que lhe é atribuído. São dois lados de uma mesma moeda.

O fato é que, tanto na devoção quanto na devoração, em uma relação tóxica, existe uma ausência enorme do amor próprio. Por fim, a “intoxicação pelo outro” versa sobre uma neurose da  atualidade, fruto de um pacto relacional penoso, difícil de dissolver e que pode chegar ao extremo de uma loucura a dois.

France Florenzano
France Florenzano é psicanalista, pós-graduada em Suicidologia pela Universidade de São Caetano do Sul. Whatsapp: (091)99111-5350 Instagram: psifrance2023

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