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Nas noites de frio, à beira do cais, os meninos acendiam um pequeno braseiro e amontoavam-se ao seu redor, tão próximos quanto possível, para dividir o pouco calor que vinha do fogo e que emanava de seus corpos mirrados e subnutridos. Em união, no breu e no ermo da zona baixa da cidade, julgavam-se mais protegidos e, quem sabe, menos desamparados, imaginando que a desgraça e o abandono pareceriam menores se coletivizados.
 
A estória dos meninos, metáfora de um Brasil que teima em se manter injusto, desagradou os donos do poder, causou-lhes repulsa e indignação, e por conta disso fogueira maior foi acesa, esta sim imponente e indiscreta, nos arredores do Elevador Lacerda, à vista de todos. Nas suas labaredas arderam quase dois mil livros inconvenientes e supostamente subversivos, em sua maioria escritos por um autor baiano muito dado a incomodar o regime, com verve aguçada para a crítica social, defensor da negritude, dos batuques e do candomblé.
 
Era novembro de 1937, vigorava o Estado Novo de Vargas, e em Salvador foram queimados incontáveis exemplares de Capitães da Areia, de Jorge Leal Amado de Faria, o Jorge Amado, então um primaveril escritor de vinte e cinco anos e cinco livros publicados – O País do Carnaval (1931), Cacau (1933), Suor (1934), Jubiabá (1935) e Mar Morto (1936).
 
Oitenta e oito anos depois, junho de 2025, desta feita em Itapoá, Santa Catarina, como se fora o cavalo de um Getúlio incorporado, anacrônico e saudoso, uma jovem vereadora do Partido Liberal assoma à tribuna da Câmara Municipal tomada por profunda indignação, imbuída dos mais elevados propósitos cívicos e morais, para novamente lançar ao lume a obra magistral do marido de Dona Zélia, Obá de Xangô, morador da Casa do Rio Vermelho e criador de Gabriela, Tereza Batista e Dona Flor.
 
Segundo a parlamentar catarinense, atenta às informações que teriam chegado até ela, o livro tem viés racista e promove a marginalização infantil, estimulando a violência de gênero e a prática de sexo entre adultos e crianças, pelo que seria inadequado como leitura recomendada aos alunos adolescentes da 7ª e 8ª séries do ensino fundamental, traduzindo uma estratégia de infiltração do comunismo nas escolas por parte da esquerda brasileira.
 
Ainda de acordo com a edil, basta “dar um google” para constatar quem foi Jorge Amado, um “artista autor de muitos livros, escritor famoso e conhecido, porém comunista, ex-deputado federal cassado, membro do PCB.”
 
Pode parecer ficção mas não é. Pode parecer opinião mas também não é, afinal só se pode opinar acerca do que se conhece, e a tal vereadora pode conhecer muitas coisas a fundo, talvez o Regimento Interno do PL, quiçá o notório currículo de seus próceres, mas sabe pouco ou quase nada de literatura brasileira. Pode, enfim, parecer ignorância (na acepção semântica da palavra), e aí sim, bingo, acerta-se na mosca.
 
De início preocupou-me que uma parlamentar não fosse capaz de interpretar e compreender aquilo que lê, comprovando a gravidade dos índices de analfabetismo funcional que nos assolam, a questionar o atual modelo educacional brasileiro. Ao assistir seu discurso nas redes sociais, contudo, percebi que não era esse o caso. A nobre vereadora não havia decifrado de forma equivocada o texto de Jorge Amado, ela simplesmente não o havia lido. Sua manifestação, em verdade, era apenas mais um episódio da guerra ideológica fratricida que vivemos, na qual a verborragia nonsense é arma de destruição em massa.
 
“Às escuras não vejo nada, repito apenas a escuridão, que tende a ampliar-se e a confundir-nos”, escreveu o poeta, pensador e cardeal português José Tolentino Mendonça, o mesmo que disse que “a sabedoria está do lado dos anunciadores da esperança e não dos apocalípticos apregoadores da tragédia” – “sábio é aquele que senta na penumbra, olhando com ponderada distância para as ilusões de transparência que a luz e a existência acendem” (in, Uma beleza que nos pertence, Ed. Quetzal, 1ª ed., Lisboa, 2019).
 
Envolta em densa penumbra, habitando um reino onde viceja a insipiência, a vereadora não consegue enxergar o mundo real. Não vê sequer as suas sombras, pois inexistem sombras onde inexiste luz. Em sendo assim, ainda que se dispusesse a ler Capitães da Areia, provavelmente não perceberia que a saga de Pedro Bala, Raimundo Caboclo, João Grande, Querido-de-Deus, Professor, Sem Pernas, Pirulito, Gato, Dora, Zé Fuinha e Barandão representa o inverso, o diametralmente oposto de tudo aquilo que ela vociferou do púlpito, em vexame potencializado e eternizado pelas redes sociais.
 
Não há romantização da violência, ode ao estupro ou doutrinação comunista. Muito ao contrário, o que se tem é um retrato fiel da precária atenção que o Brasil dá às suas crianças, construído com inteligência, criatividade e lirismo, traços marcantes da literatura de Jorge Amado, um dos maiores escritores da história deste país. Pintado com sarcasmo e aguçado senso crítico, este retrato é uma denúncia de desamparo e descaso, um grito de alerta que, para nossa tristeza, até hoje não foi ouvido.
 
Tivesse lido a obra de peito aberto, despida dos preconceitos e do radicalismo cego que aparentam movê-la, a vereadora teria se encantado com a riqueza de detalhes e com a magnífica construção dos personagens. Provavelmente cairia de amores por Professor, o menino que sabia ler, roubava livros e contava histórias ao grupo reunido para dormir nos galpões e armazéns do porto; ou por Sem Pernas, o garoto coxo que vive um belíssimo conflito de amor quando planeja assaltar o casa de Dona Ester, que o acolhera e o tratara com dignidade e afeto; quiçá por Dora, a única menina do grupo, idealização da figura materna que a maioria dos garotos não conheceu.
 
Tivesse lido o livro de boa vontade, divertiria-se com as agonias do Padre José Pedro, dividido entre antagonismos inconciliáveis – a indiferença da cidade alta e as necessidades das beira do cais; ou com as artimanhas de Dona Aninha, a Mãe-de-Santo que se soma ao sacerdote católico para simbolizar solidariedade e ternura.
 
Tivesse lido a estória-história dos capitães da areia com algum esforço, constataria, enfim, que se trata de um libelo em favor da infância marginalizada e da transformação social, contra a irresponsabilidade, a injustiça e a repressão. Ao fim e ao cabo, talvez se comovesse com o menino Pirulito, concentrado em oração diante das imagens de Santo Antônio e de Nossa Senhora das Sete Dores – “O que ele queria era felicidade, era alegria, era fugir de toda aquela miséria, de toda aquela desgraça que os cercava e os estrangulava. Havia, é verdade, a grande liberdade das ruas. Mas havia também o abandono de qualquer carinho, a falta de todas as palavras boas.”

Mas não leu, não se permitiu ler, e com isso segue adiante, exercendo um mandato carente de poesia, em que faltam letras e sobeja insensibilidade.

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

O crime das irmãs Papin. O desfecho.

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