Publicado em: 7 de abril de 2025
“…abracei o corpo da minha mulher, segurei-lhe a mão, a sua cabeça no meu ombro. criei um pequeno embalo, como para adormecê-la, ou como se faz a quem chora e queremos confortar. vai ficar tudo bem, vai correr tudo bem. o que era impossível, e o impossível não melhora, não se corrige. estávamos encostados à parede, sob o cortinado, como fazíamos na juventude para os beijos e para as partilhas tolas de enamorados. estávamos escondidos de todos, eu e a minha mulher morta que não me diria mais nada, por mais insistente que fosse o meu desespero, a minha necessidade de respirar através dos seus olhos. a minha necessidade vital de respirar através do seu sorriso. eu e a minha mulher morta que se demitia de continuar a justificar-me a vida e que, abraçando-me como podia, entregava-me tudo de uma só vez. e eu, incrível, deixava tudo de uma só vez ao cuidado nenhum do medo e recomeçava a gritar. com a morte, também o amor devia acabar. acto contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou de existir. pensamos, existe ainda, está dentro de nós, ilusão que criamos para que se torne todavia mais humilhante a perda e para que nos abata de uma vez por todas com piedade. e não é compreensível que assim aconteça. com a morte, tudo o que respeita a quem morreu devia ser erradicado, para que aos vivos o fardo não se torne desumano. esse é o limite, a desumanidade de se perder quem não se pode perder. foi como se me dissessem, senhor silva, vamos levar-lhe os braços e as pernas, vamos levar-lhe os olhos e perderá a voz, talvez lhe deixemos os pulmões, mas teremos de levar o coração, e lamentamos muito, mas não lhe será permitida qualquer felicidade de agora em diante.“
Escrita com maestria e ternura, como sói acontecer sempre que o português Valter Hugo Mãe (1971) produz literatura, essa é a descrição da morte de Laura nos braços do marido António, o barbeiro aposentado que, aos 84 anos de idade, conduz o enredo de A máquina de fazer espanhóis, romance de rara beleza publicado em 2010 (o texto está transcrito tal como foi criado, todo ele em letras minúsculas).
Já viúvo, António é levado pelos filhos a um lar de idosos, onde passa a compartilhar a solidão e a saudade com outros internos, sem contudo esquecer a esposa, vivendo dali em diante um sofrimento de amor que irá com ele ao fim de seus dias. Embora faleça no início do livro, Laura acompanhará o marido em todos os instantes, povoando seus pensamentos e protagonizando suas memórias mais pungentes, traço comum às histórias românticas que evocam amores que perduram após a morte, resistindo ao tempo e à distância, entremeando sentimentos, tragicidade e melancolia.
Em cenários como esse logo vem à tona, quase que involuntariamente, o nome de William Shakespeare (1564-1616), tido por muitos como o maior dramaturgo de todos os tempos, em particular por conta da saga de Romeu Montéquio e Julieta Capuleto, dois jovens de famílias antagônicas que resolvem casar-se às escondidas, vítimas de impiedosas armadilhas do destino – para fugir com o amado e escapar da vigilância dos pais, Julieta toma uma poção que a deixa inerte e desacordada, mas a mensagem em que relatava seus planos não chega a Romeu, que acreditando-a morta, mata-se ingerindo veneno. Quando desperta do torpor induzido, ela o vê morto e também tira a própria vida, apunhalando-se no peito com uma adaga.
O bardo inglês usualmente acentuava os tons de catástrofe e flagelo, dando às suas fábulas um peso extra, um fardo a mais para os leitores, impactados por desfechos sempre funestos, a sugerir que a fatalidade irremediavelmente condena o amor ao infortúnio. Não há finais felizes, e nisso a literatura costuma imitar a vida, mas pode haver finais mais amenos, mais líricos e lúdicos, em que o amor valha a pena, crie tesouros, deixe legados, se transmute em doces lembranças, ainda que interrompido pelas vicissitudes da vida, impondo ao amante que sobrevive à amada, ou vice-versa, suportar a dor da ausência, acostumar-se à solidão, reaprender a voar em voo solo.
É o que ocorre com o barbeiro António no romance de Valter Hugo Mãe, leitura obrigatória para quem pretende compreender a literatura portuguesa contemporânea; é também o que já ocorria na obra magistral de outro escritor lusitano importantíssimo, antecessor e formador dos que hoje despontam, autêntico baluarte da produção literária do país no Século XX: Vergílio Ferreira, nascido em Melo (Gouveia), na Beira Alta, em 1916, falecido em 1996 aos 80 anos, deixando uma sólida herança – aproximadamente quarenta títulos entre romances, contos, ensaios, epístolas e diários, todos com profundo conteúdo existencialista.
Vergílio foi seminarista mas declinou do sacerdócio. Formou-se em filosofia e foi professor da matéria durante toda a vida, casou-se e viveu com a esposa até nos deixar. Dentre seus livros merecem destaque Manhã submersa (1954), Aparição (1959) e Para Sempre (1983), este último minha leitura atual, origem do fascínio que deu causa ao texto que ora estão a ler.
Nele o protagonista Paulo, já idoso e recentemente viúvo, retorna à aldeia onde nasceu e passou sua infância, especificamente à casa onde cresceu na companhia de duas tias, sem a presença dos pais, para tentar reencontrar um sentido para a vida, exorcizar fantasmas e compreender o que a senectude lhe reservara. Nesse percurso um detalhe chama a atenção: o amor devocional de Paulo por Sandra, a esposa há pouco falecida, similar ao sentimento do barbeiro António por Laura, a mulher que morreu em seus braços.
“Breve a noite virá e a vida se foi. No silêncio de ti e do milagre absurdo em que exististe. Pela janela aberta, meu estar suspenso de mim, vivo de atenção para o nada do meu evocar. É a presença intensa de um mais do que estou vendo e é só isso que estou vendo na sua entregue nulidade. Interposta comoção entre aquilo que vejo e o passado imóvel inscrito na eternidade (…) A casa dorme na tarde de calor. Foi quando de novo, lá em baixo, ao longe. É um canto lento como o movimento interno da terra. Venho à janela, ouço-o, na distância aérea de mim. E assim estou sem saber que fazer – que tens ainda a fazer? Como a fruta que cai, a velhice, e vai apodrecendo até ser terra. Como um cansaço de tudo, e uma breve ideia fortuita para mexer (…) Há um espaço vazio de ti, e com que é que hei de preenche-lo?”
Detalhe curioso é que treze anos depois de lançar Para Sempre, já em 1996, Vergílio Ferreira publicou Cartas a Sandra, autêntico romance epistolar, uma coletânea de dez missivas que Paulo teria escrito para Sandra após a sua morte – declarações póstumas de amor que dão um sentido ainda maior ao universo ficcional criado pelo autor, como que completando o livro original. Tê-los lido conjuntamente foi uma experiência memorável que recomendo a quem pretender aventurar-se pelos territórios vergilianos.
“Deves talvez lembrar-te de que nunca me escreveste. Mas eu escrevi-te algumas vezes quando vinha a férias e a emoção era de mais. E um dia perguntei-te se tinhas guardado essas cartas. Tu olhaste-me com o teu sorriso breve e repreensivo. Rasguei-as, naturalmente, disseste, e porque havia de guardá-las? Gostava de as reler, de as ter, disse eu. Para recuperar o que fui nelas e o que houve nelas de ti. Que tolice, disseste ainda, a adolescência passou. E, no entanto, nesta casa vazia e enorme, no silêncio da Terra que me aturde, é essa adolescência que regressa, e com ela a tua face séria e doce. Escrever-te. Possivelmente irei fazê-lo mais vezes até ver se no escrever se me esgota a tua fascinação. Tenho algumas fotografias tuas, mas o que procuro nelas não está lá. E é decerto por isso que raramente volto a vê-las. (…) A tua juventude que mora na eternidade, onde para sempre me ficou. Mesmo quando já envelhecíamos e a filha cresceu e se foi. Porque eu olhava-te e o que via à transparência dos anos acumulados era essa juventude que ficara em ti e era o eterno do teu ser. Aí está agora definitivamente – como poderia eu reconhecer-te no tempo que ainda houve? É-se eterno dentro de nós. Mas a tua eternidade mora também na tua imagem, na frágil harmonia do teu corpo que conheci.”
Em Shakespeare o amor não se completa, não é vivenciado, posto à prova, não gera frutos, eis que a tragédia impede a consumação dos intentos de Romeu e Julieta. Em Walter Hugo Mãe e Vergílio Ferreira a saudade dilacerante é a prova viva de um amor efetivo, testado à exaustão, gozado por anos a fio e eternizado na memória – afinal, como escreveu Adélia Prado: “o que a memória ama fica eterno.”
Com todo respeito aos que preferem o bardo, eu fico com os patrícios, a lembrar docemente da saudade que testemunhei minha Vó Albertina sentir do Vô Alfredo, que vejo minha mãe sentir de meu pai. É um tipo de amor que não termina, que segue construindo mesmo na ausência-presença de um dos amantes, o que me faz recordar também, para terminar, de um texto de Rubem Alves que bem descreve o que sentem António e Paulo, pelas letras de Valter e Vergílio – a crônica chama-se “Comemorar, recordar”, e conta uma estorinha mais ou menos assim:
“Um homem dilacerado pela dor da saudade da mulher amada, que falecera há pouco tempo, recorreu aos deuses em desespero, pedindo que a devolvessem. – A morte é mais forte que nós, responderam os deuses. – Não podemos devolver o que a morte levou. Mas podemos pôr fim ao seu sofrimento. Podemos fazê-lo esquecer a sua amada. Podemos curá-lo da saudade… Horrorizado o homem respondeu: – Não, mil vezes não! É o meu sofrimento que a mantém viva junto de mim!”
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