Publicado em: 13 de abril de 2025
Em ‘A invenção da solidão’, Paul Auster escreveu que não há nada mais terrível do que ter que encarar os objetos de um morto. Segundo ele, as coisas, por si só, são inertes, destituídas de ânimo e personalidade, e o que lhes empresta sentido é a vida daqueles que delas fizeram uso. Quando estas vidas se esvaem as coisas transformam-se, embora permaneçam as mesmas. É como se, dali em diante, carregassem fantasmas intangíveis, significados incrustados que delas não se pode extrair, qual pedra que habita o âmago da estátua.
Quem já foi obrigado a arrumar o quarto, os armários ou as gavetas de um morto, ou a vesti-lo, compreende bem o que Auster quis representar. Nas coisas que ficam remanesce a identidade, mantém-se a existência fluida daqueles que se foram – como já não temos mais o corpo, a substância, resta-nos buscar nos objetos a presença que arrefece a dor e a estranheza que a ausência suscita.
Na mesma obra, o autor diz que na vida um homem e seu corpo são sinônimos, que no corpo é que se reconhece o homem. A morte, contudo, os torna antônimos, separa-os para todo o sempre. O corpo perde qualquer relevância ou conteúdo. Enterrado ou queimado, inexoravelmente volta ao pó. Mas o homem subsiste, sobrevive, persiste no intelecto e nas coisas que lhe pertenciam – “Quando um homem entra em uma sala e apertamos sua mão, não temos a sensação de que cumprimentamos a mão dele, ou seu corpo, mas sim a ele mesmo. A morte modifica isso. Este é o corpo de X, não é X. A sintaxe é totalmente diferente. Agora falamos de duas coisas distintas, em vez de uma só, dando a entender que o homem continua a existir, mas só como uma ideia, um aglomerado de imagens e recordações na mente de outras pessoas. Quanto ao corpo, não é mais que carne e ossos, um amontoado de matéria.”
Paul Auster tinha razão. Corpos vão, legados e coisas ficam, e com eles os homens vencem temporariamente a morte. A maioria de nós, pessoas comuns, pobres mortais, circulará por mais uma, talvez duas, quiçá três gerações. Ainda seremos lembrados e estimados pelos amigos e filhos, fortuitamente pelos netos. Para bisnetos haveremos de ser referências históricas, dados originários; abnetos e tetranetos já não falarão a nosso respeito – nesta altura estaremos definitivamente falecidos, habitaremos então a dimensão oculta do esquecimento.
Mas existe a arte e existem os artistas, os gênios dotados de dons divinais, incumbidos de criar beleza. E a beleza – essa “sombra de Deus sobre o mundo”, como a descreveu a poetisa Helena Kolody – é exatamente o triunfo da arte sobre a morte, a permitir que seus criadores se tornem perenes, eternos, imortais, e com eles aquilo que produzem – escultura, pintura, fotografia, música, dança e literatura. As coisas dos artistas também os identificam, tal como ocorre com os mortos anônimos, mas aquelas que os artistas produzem irão além, muito além, de uma, duas ou três gerações.
Não à toa Rubem Alves certa feita escreveu que “a arte não suporta o efêmero. Ela é uma luta contra a morte”, uma luta que costuma vencer, eu acrescentaria.
Há poucas semanas fui visitar a casa e ver os objetos de um homem morto, ao menos segundo os registros oficiais, que dão conta de sua partida às onze e meia da manhã do dia 18 de junho de 2010. Tanto a casa quanto as coisas todas estão impregnadas da sua presença, marcadas de modo indelével por sua personalidade, a tal ponto que, enquanto circulava pelos ambientes – sala, cozinha, quarto, escritório e biblioteca, tinha a nítida sensação de que a qualquer momento o encontraria. Não era uma mera impressão, ele realmente estava lá, em cada canto, em cada obra de arte, em cada um dos muitos livros deixados sobre as mesas, alguns deles abertos em determinadas páginas, como se a leitura estivesse interrompida por um breve momento, pronta a ser retomada.
Era a casa e eram as coisas de um artista notável, um gênio perene, eterno e imortal, envoltas numa aura impressionante de humanismo, de inconformismo verdadeiro com as mazelas que assolam o planeta, sobretudo as chagas sociais, a existência da fome em concomitância com a exploração de Marte. Eram, portanto, a casa e as coisas de um homem vivo, imensamente vivo, à revelia de certidões, papéis, conservatórias e notícias de jornal.
Estive em Lanzarote, nas Ilhas Canárias espanholas, em visita à casa, às coisas, à memória e ao legado de um dos maiores escritores, pensadores e intelectuais deste século e do anterior, em língua portuguesa ou em qualquer outro dos mais de cinquenta idiomas para os quais foi traduzido, um homem universal, nascido e criado entre lavradores e pastores analfabetos do Ribatejo português, capaz de perceber que o homem mais sábio que conheceu durante a vida não sabia ler e nem escrever.
Estive, enfim, no local de concepção, gestação e parto de algumas das maiores obras literárias da atualidade, monumentos artísticos que lhe valeram o Prêmio Nobel de Literatura em 1998, cinco anos após a sua chegada à ilha vulcânica que ele reconheceu como terra sua, ainda que não fosse a sua terra.
Vinte e tantos dias depois sigo impactado pela experiência, lamentando que a morte tenha se apaixonado e adormecido ao lado de um violoncelista, e não de um certo escritor lusitano. Se assim o fosse, ele talvez ainda estivesse aqui. Não obstante, é melhor que tudo tenha sido como foi, afinal sempre chegamos aos sítios onde nos esperam. Para além disso, tal qual a mulher das Sete-Luas, a nós também foi dado recolher um pouco das suas vontades, desprendidas de tantos livros para cair sobre nós em forma de arte e beleza.
Quanto a José, haver estado e já não estar são pormenores. Em verdade ele segue entre nós, não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Pilar.
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