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Trabalhei com rádio uma vida inteira. Passava os dias ouvindo as músicas de sucesso, que se repetiam várias vezes. Quando chegava em casa, ouvia lançamentos para escrever resenhas para o jornal, além dos outros interesses. Isso fez com que criasse o hábito de ouvir as músicas de minha preferência no carro, onde sempre tive o melhor som que podia e posso ter. Uma miscelânea de estilos. Mas encontrei no Facebook um vídeo mostrando Eric Clapton e Stevie Winwood tocando “Voodoo Chile”, hit de Jimi Hendrix. E por coincidência, ouvia no carro “extras” ou sobras do disco “Electric Ladyland”, de Hendrix, o que me levou de volta às lembranças. Winwood também toca no original. Tinha 14 para 15 anos e voltara do futebol no colégio. Estava deitado quando meu irmão, que já trabalhava na Prc5 chegou e botou pra tocar um disco que havia recebido da gravadora. Dei um pulo. Pedi mas ele não me deu. Dei um jeito. Até então, através dele, ouvia todo o rock inglês e também as novidades nacionais. Este disco mudou muita coisa. “Voodoo” tem um riff combinado com pedal wah wah, bem distorcido e marcante. E guitarras maravilhosas. O disco todo é genial. O título do álbum veio a ser o do estúdio em NY onde Jimi gravou em meio a jams com músicos maravilhosos. Por isso as “sobras” são tão saborosas. O Facebook trouxe outro momento: Jair Rodrigues em um Festival da Tv Record, 1968, talvez, tv ainda em p&b, cantando “Disparada”, de Geraldo Vandré e Theo de Barros, com os trios Maraiá e Novo. Ambiente entre a festa e a guerra, resultados finais, ambiente político denso, o percussionista usa um xique xique e uma queixada de bode e dá início a uma das mais brilhantes músicas de nossa história. “Prepare o seu coração, pras coisas que eu vou contar”… Jair era do interior de São Paulo e cantava sertanejo e seresta. Na cidade grande, fizeram-no virar sambista e ele explodiu ao lado de Elis Regina no programa “O Fino da Bossa”, na Record, que usava a excelência do canto e a exuberância de ambos em medleys de hits e clássicos como “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes (olha só!) que venceu festivais e deu o apelido de Eliscóptero, por sua interpretação mexendo os braços. Vejam, um paulista do interior e uma gaúcha, cantando sambas. Jair vai ao Nordeste e pega essa embolada genial. Usa a extensão de sua voz para fazer a casa tremer, “porque gado a gente marca, tange fere morre mata, mas com gente é diferente”. Ou “agora sou cavaleiro, laço firme braço forte no reino que não tem rei”, para vibração da plateia no duplo sentido. Rodeando Jair, a fina flor da mpb, com Chico Buarque, Nara Leão, Mpb4, Caetano Veloso, Gilberto Gil e até Danuza Leão, uma das apresentadoras. Vandré foi vítima da ditadura. Théo continuou músico, ele que toca o riff na viola. Jair depois voltou ao samba em grande carreira. Lembro dele cantando “Tengo Tengo”, samba de enredo do RJ. Elis foi adiante mas somente se tornou a maior cantora do Brasil depois de “Elis e Tom”, e a partir daí refinou seu canto ao máximo, como pode ser assistido no documentário. César Mariano, o pianista, seu marido, teve grande importância e sabedoria. Antes, ele já fazia sucesso com o Som Três que criou a ambiência sonora para Wilson Simonal, por exemplo, em uma mistura cheia de malícia e charme do samba. Assisti a esses festivais certamente alguns dias após acontecerem, pois enviavam o VT por avião a Belém. Foram momentos maravilhosos de grande audácia e revolução da música. Podia ficar contando por horas. Imaginem ter 14 anos e estar sendo submetido a esse temporal de novidades. Havia um liquidificador sonoro em meu cérebro, que me permitiu trabalhar e escrever sobre música uma vida inteira. Confesso que vivi, ouvi, assisti e até compus. Era feliz e sabia disso.

Edyr Augusto Proença
Paraense, escritor, começou a escrever aos 16 anos. Escreveu livros de poesia, teatro, crônicas, contos e romances, estes últimos, lançados nacionalmente pela Editora Boitempo e na França, pela Editions Asphalte. Foto: Ronaldo Rosa

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