Publicado em: 10 de fevereiro de 2024
Trabalhei com rádio uma vida inteira. Passava os dias ouvindo as músicas de sucesso, que se repetiam várias vezes. Quando chegava em casa, ouvia lançamentos para escrever resenhas para o jornal, além dos outros interesses. Isso fez com que criasse o hábito de ouvir as músicas de minha preferência no carro, onde sempre tive o melhor som que podia e posso ter. Uma miscelânea de estilos. Mas encontrei no Facebook um vídeo mostrando Eric Clapton e Stevie Winwood tocando “Voodoo Chile”, hit de Jimi Hendrix. E por coincidência, ouvia no carro “extras” ou sobras do disco “Electric Ladyland”, de Hendrix, o que me levou de volta às lembranças. Winwood também toca no original. Tinha 14 para 15 anos e voltara do futebol no colégio. Estava deitado quando meu irmão, que já trabalhava na Prc5 chegou e botou pra tocar um disco que havia recebido da gravadora. Dei um pulo. Pedi mas ele não me deu. Dei um jeito. Até então, através dele, ouvia todo o rock inglês e também as novidades nacionais. Este disco mudou muita coisa. “Voodoo” tem um riff combinado com pedal wah wah, bem distorcido e marcante. E guitarras maravilhosas. O disco todo é genial. O título do álbum veio a ser o do estúdio em NY onde Jimi gravou em meio a jams com músicos maravilhosos. Por isso as “sobras” são tão saborosas. O Facebook trouxe outro momento: Jair Rodrigues em um Festival da Tv Record, 1968, talvez, tv ainda em p&b, cantando “Disparada”, de Geraldo Vandré e Theo de Barros, com os trios Maraiá e Novo. Ambiente entre a festa e a guerra, resultados finais, ambiente político denso, o percussionista usa um xique xique e uma queixada de bode e dá início a uma das mais brilhantes músicas de nossa história. “Prepare o seu coração, pras coisas que eu vou contar”… Jair era do interior de São Paulo e cantava sertanejo e seresta. Na cidade grande, fizeram-no virar sambista e ele explodiu ao lado de Elis Regina no programa “O Fino da Bossa”, na Record, que usava a excelência do canto e a exuberância de ambos em medleys de hits e clássicos como “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes (olha só!) que venceu festivais e deu o apelido de Eliscóptero, por sua interpretação mexendo os braços. Vejam, um paulista do interior e uma gaúcha, cantando sambas. Jair vai ao Nordeste e pega essa embolada genial. Usa a extensão de sua voz para fazer a casa tremer, “porque gado a gente marca, tange fere morre mata, mas com gente é diferente”. Ou “agora sou cavaleiro, laço firme braço forte no reino que não tem rei”, para vibração da plateia no duplo sentido. Rodeando Jair, a fina flor da mpb, com Chico Buarque, Nara Leão, Mpb4, Caetano Veloso, Gilberto Gil e até Danuza Leão, uma das apresentadoras. Vandré foi vítima da ditadura. Théo continuou músico, ele que toca o riff na viola. Jair depois voltou ao samba em grande carreira. Lembro dele cantando “Tengo Tengo”, samba de enredo do RJ. Elis foi adiante mas somente se tornou a maior cantora do Brasil depois de “Elis e Tom”, e a partir daí refinou seu canto ao máximo, como pode ser assistido no documentário. César Mariano, o pianista, seu marido, teve grande importância e sabedoria. Antes, ele já fazia sucesso com o Som Três que criou a ambiência sonora para Wilson Simonal, por exemplo, em uma mistura cheia de malícia e charme do samba. Assisti a esses festivais certamente alguns dias após acontecerem, pois enviavam o VT por avião a Belém. Foram momentos maravilhosos de grande audácia e revolução da música. Podia ficar contando por horas. Imaginem ter 14 anos e estar sendo submetido a esse temporal de novidades. Havia um liquidificador sonoro em meu cérebro, que me permitiu trabalhar e escrever sobre música uma vida inteira. Confesso que vivi, ouvi, assisti e até compus. Era feliz e sabia disso.
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