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São três horas da manhã e alguma coisa de um dia qualquer. Vagner é um vigilante à espera do carro que faz ronda para fazer relatório. Ali, nada acontece. Quer dizer, nada que deva ser relatado. É a Casa das Artes, no centro, que recebe jovens candidatos a artistas, sobretudo pintores. O que Nonato gosta, entre outras coisas é de escrever sonetos. Está concentrado, tentando uma rima para encerrar a obra mais recente. Nem lembra onde essa mania começou. Pensa em lançar livro. Ainda não sabe como.

O amor e a dor são amigas
Tal violência e o ciúme
Sem dizer nada assume
Razão e emoção são inimigas

Namorando a lua e o sol
Trás recordações e dor
Joguei tudo fora sem valor
Não quis sofrer por amor

Existir sem viver é o fim…

Um estrondo e ele se vê desabando no chão. Somente escuta uma voz dizendo: ”morre filho da puta pra aprender a não estuprar criança”. Agora não escuta nada. O corpo está entorpecido e a cabeça molhada. Não consegue passar a mão onde dói. Não se mexe. Quer gritar por socorro mas não consegue. Pensa velozmente quem seria o atirador. Suplica a Nossa Senhora de Nazaré para que o salve. E esse carro da ronda que não vem. Ih, pintou a rima para o soneto. Não move a cabeça. Os olhos têm apenas uma visão lateral. Como dói a cabeça! Arde! Não passa ninguém? Porra, o Remo perdeu de novo. Que time frouxo. Luisa, meu Deus! Luisa vai ficar doida com isso. Aquele garotinho, viadinho. A culpa foi dele. Veio se roçando. Sabia da minha fama de comedor. Esses artistas de merda, monte de viado. Fetiche por farda. Como mesmo. Aqui de madrugada é meio morto. Cadê o carro da ronda? Porra, ninguém me vê aqui. Não consigo mexer. Pai nosso que estás no céu, santificado seja… não me deixa morrer! O celular próximo da mão. Não consegue pegar direito. Não vai ligar. Porra, falta só fechar o soneto.

Existir sem viver é o fim
É primavera sem flores
O sofrer p

Bem que não queria relar com o moleque. Viadinho. Agora papai veio me matar. Parece que não conhece o filho. Pára de pensar. Tem de respirar. Vamos, um, dois, lentamente, inspira, expira. Não passa ninguém! Sempre passa algum bebum ou puta do Bar do Parque. Nem a ronda, caralho! Um frio da porra. Gosto de sangue na boca. Está escorrendo. Amanhã tem culto na igreja. E a Luisa, o que vai dizer? Bem que eu te falei, larga essa porra de emprego. E quem vai pagar as contas? Assim nem dá pra marcar casamento. Veja, quando escrevi que eu pensava em terminar com… mas, sei lá. Rima pobre. Agora não vem nada. Assim, de longe, quem passa pensa que me abostei bêbado no chão. Quanto tempo ainda vou durar. Não vou morrer, sou jovem, forte. Nossa Senhora de Nazaré, santinha, Círio, ih, tem Círio, eu acompanho, Senhora. A Luisa vai entender. Ela é crente, eu não. Porra, será que tá tão errado comer uns viadinhos de vez em quando? Eles provocam muito. Adoram uma farda. Tomara que ninguém fale nada. Gosto sim e pronto. Não, acho que deu merda. Ah, já sei, ih, o soneto é assim …. já sei o final…

O amor e a dor são amigas
Tal violência e o ciúme
Sem dizer nada assume
Razão e emoção são inimigas

Namorando a lua e o sol
Trás recordações e dor
Joguei tudo fora sem valor
Não quis sofrer por amor

Existir sem viver é o fim
É primavera sem as flores
O sofrer p

Edyr Augusto Proença
Paraense, escritor, começou a escrever aos 16 anos. Escreveu livros de poesia, teatro, crônicas, contos e romances, estes últimos, lançados nacionalmente pela Editora Boitempo e na França, pela Editions Asphalte. Foto: Ronaldo Rosa

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