Publicado em: 5 de maio de 2025
Em 1970, disse Tim Maia “Este país não pode dar certo. Aqui prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme, traficante se vicia e pobre é de direita”. Ora, será que eram mesmo as prostitutas, cafetões e os pobres daquela época os verdadeiros responsáveis pelo Brasil não dar certo? Ou, como sempre, os que de fato detinham as ferramentas do poder – capital e controle dos fóruns decisórios?
Bem, o que registro é que esta é a primeira referência a “pobre de direita” que eu conheço. Em outro momento histórico, em outra conjuntura política. Mas ainda hoje assistimos coisas como 30% dos trabalhadores do Uber e 99, que não acessam direitos trabalhistas, se dizem de extrema direita. Ex-presidente da Fundação Palmares, negro, nega a existência do racismo no Brasil. Sem falar em 90% dos empresários de classe média, que vivem do varejo, apoiarem o modelo de comodities e serem contra o imposto sobre grandes fortunas.
Sim, o problema do grande número de pessoas que não possuem consciência de sua condição econômica e social não é de hoje. E também não é só do Brasil. Estudando a passagem do Feudalismo da Idade Média para o Mercantilismo/Capitalismo da Idade Moderna, aprendemos que era comum que um ex-camponês fugido do feudo do Príncipe, que teve sucesso como artesão no burgos(novas comunidades comerciais), juntava dinheiro para comprar um título de nobreza e “passar a ter sangue azul”.
Até hoje, não são poucos os que da América do Sul e Central ou da África, sonham e assim que podem migram para a Europa ou EUA. E mesmo os de maior renda, quando chegam lá, são tratados como “de fora”, “chicanos”. Alguns nem percebem. Este sonhar com “uma nova vida” implica em tentar abandonar sua própria identidade, em vão. E a de só enxergar solução a partir das possibilidades individuais. Assim abandona a tarefa de fazer melhorar a vida aqui, coletivamente.
Ora, ao negar sua natureza social e territorial, desvaloriza sua identidade cultural e econômica. Estudando o que os países ricos fizeram para serem ricos, aprendemos que há um ponto comum. A valorização identitária. Como exemplos simbólicos ofereço: Os japoneses, derrotados e humilhados após a II Guerra Mundial, venderam para o mundo todo uma comida de feira popular, um bolinho de arroz “unidos venceremos” com uma tira de peixe cru em cima e aqui, gente fina se arruma pra ir comer sushi gourmet. Sem problema, eu também gosto e pago. Os italianos levaram para o mundo todo uma comida de rua e aqui, as famílias se reúnem para comer uma boa pizza. Sem problema eu também gosto.
Mas então onde está o problema? Está no fato de termos acabado com as Tacacazeiras, que antes encontrávamos uma em cada esquina, para ir comer hamburguer. Trocamos, sem nos dar conta, a economia da mandioca, jambu, camarão, pimenta e cuia, que precisa da floresta em pé, pela economia da carne de segunda com liga de soja que, na Amazônia, utilizam tecnologias que devastam as florestas. Desde os 90, sem saber, por ignorância e limitação cognitiva, com nossa rotina de consumo financiamos parte da devastação da Amazônia. Que hoje é pauta global nos debates da COP 30.
E o problema? O problema é que não exportamos tacacá para o mundo internalizando riqueza. Temos o maior trem do mundo, 330 metros de comprimento, levando minério de ferro concentrado sem valor agregado. Mas quando precisamos de aço é preciso importar. Mandamos grãos brutos de soja e importamos seus derivados de valor agregado. O Congresso autorizou importação de lixo, diminuindo investimentos em reciclagem dos resíduos que já geramos.
O produto que mais o Brasil exportou em 2024 foi petróleo. E importamos gasolina porque quando íamos avançar para a autossuficiência, quebraram a refinaria de Abreu e Lima dizendo que havia corrupção. Se era, prende o ladrão, mas nada justifica impedir o Brasil de conquistar soberania em sua política de combustíveis e energia. Como parar os pobres de direita e a esquerda playboy, obedientes aos ditames do capital de fora?
Este é um desafio identificado cientificamente no início do século XX a partir da constatação de vários processos nacionais em que os respectivos modelos de desenvolvimento eram controlados pelas nações industrializadas que mantinham em suas ex colônias condições de miséria e insalubridade social. Mas com uma novidade, a diminuição dos eventos de força, inclusive militar, para exercício de dominação da nação subjugada e o crescimento de estratégias de convencimento e sedução através da manipulação indevida de escolas, mídias(rádios, Tvs, cinemas) e igrejas.
Atenção, em nenhum momento se atribui às escolas, artes e religiões a iniciativa das estratégias de dominação por consenso, mas que agentes político-econômicos usaram e usam estas instituições contra suas reais atribuições sociais, sobretudo o exercício da liberdade desde o conhecimento, as expressões artísticas plurais e as diversas expressões da fé.
Na literatura científica, registra-se que nos anos 30 do século XX, Antônio Gramsci, desenvolveu o conceito de “Hegemonia” para explicar como as classes dominantes mantêm o controle sobre a sociedade. A hegemonia é um processo pelo qual uma classe social, através de uma liderança cultural, moral e intelectual, consegue obter o consentimento dos subordinados e, portanto, estabelecer e perpetuar sua dominação. Sem nunca abrir mão do recurso à força, caso o consenso não seja obtido pelo convencimento ideológico.
No contexto histórico, “Hegemonia” não se constata apenas em Relações Internacionais onde uma nação se submete a outra por subordinação política ou militar, como hoje estamos assistindo na Ucrânia, em Gaza ou Congo, mas também à subordinação cultural e ideológica. A dominação militar é hoje o item mais caro, em 2021 foram mais de 2 trilhões de dólares. A dominação ideológica, pelo convencimento, torna o dominado ativo político-econômico do processo que não só deixa de demandar gastos do dominador mas passa a gerar ganho direto ao dominador, principalmente no consumo da cultura estrangeira sem contrapartida, e principalmente sustentando o modelo econômico que lhe esbulha.
Na obra de Gramsci há o registro de nações e movimentos que resistiram com eficácia ações externas de dominação que quando não se reverteram tiveram que estabelecer outras estratégias inclusive negociadas, o que reforça a possibilidade de relações internacionais democráticas. Ele atribui um papel crucial aos intelectuais, os que conseguem pensar estrategicamente sua própria nação, independente de escolaridade e renda. Se trata da contra-hegemonia, que consiste nos esforços para desestruturar hegemonia indevida construindo no mesmo lugar uma hegemonia que internalize riqueza localmente a partir de novos valores éticos e estéticos, políticos e jurídicos.
Voltamos então ao papel da identidade como valor econômico e político, ou seja, estratégia de desenvolvimento. Se não gostarmos do que somos, do que temos, não seremos capazes de “vender” ao mundo o que pode nos fazer ricos. Só gostando e achando lindo o que somos e fazemos a partir de nosso território, é que seremos capazes de colocar o tacacá, a farinha, o cupuaçu, o bacuri, a infinidade de condimentos, raízes e óleos que podemos produzir com custo muito baixo e alto valor agregado porque só nós temos. Mas isso inclui estabelecer as condições, inclusive de escala de produção em um conjunto de outros conceitos que colocaram em nossa cabeça sem nenhuma aderência à nossa realidade.
A nova hegemonia que precisamos, depende de resgatarmos os “pobres de direita” assim como a “esquerda playboy” para valores e estratégias que os identifique com suas próprias realidades. Revirando o jogo suicida da luta interna para o jogo cooperativo que as grandes nações jogam entre si. Tarefa complexa que nos exige conhecimentos inovadores, mas inovadores de verdade.
Compreender a hegemonia é essencial para qualquer projeto de transformação social que busca criar uma sociedade mais rica, justa e igualitária.
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