E aí? Ele não vai cantar? Frase que muito comumente já foi escutada pelos cinco cantos desse Brasil, (ressalvando que o quinto canto é o Norte, mas ninguém conta com esse canto por aqui) quando se trata de música instrumental. E por falar em canto, a necessidade que as pessoas têm em ouvir o canto é premente em uma sociedade onde o acesso à cultura geral não foi permitido. Gerações e gerações “educam” seus filhos em lares onde a música tem que ter letra em seus cotidianos.
Trabalhando com música instrumental há mais de quarenta anos, muitas histórias aconteceram que, não fosse um certo jogo de cintura, o estrago seria maior. Em um certo evento onde fui tocar, fui anunciado com pompas de super star. Meu repertório era de chorinhos e valsas brasileiras. O nome do meu espetáculo era “Violão, Brasil Instrumental”. No momento de eu ser anunciado, o cerimonialista disse com voz impostada:
– Vamos receber com muito carinho, ele, o nosso querido cantor Sebastião Habib!. (O show era totalmente instrumental).
Meu Jesus, além de me chamar de cantor ainda me confundiu com meu amigo e guru Sebastião Tapajós. De certa forma até me acostumei a ter meu nome confundido com o do mestre. Claro que a essas alturas como era numa praça aberta tinha gente até se abraçando para começar a dançar. Entrei no palco com aquela cara de pessoa em elevador lotado. Fiz o show, mas acho que tem gente até hoje me aguardando cantar.
Ainda falando do Tião querido, uma ocasião terrível aconteceu. Uma empresa de construção em Belém me contratou para tocar e fazer um show de violão, pois o filho do dono afirmou que era meu fã. Fiquei feliz pois queria um espetáculo de música instrumental. Eu pensei: até que enfim!
Fui tratado como um príncipe e todos gostaram demais das músicas. A moça que estava tratando de tudo no local da apresentação disse constrangida que tinha sido um dia de trabalho estafante e perguntou se eu me importava de buscar o cheque do pagamento no dia seguinte. Disse que de forma alguma. Quando fui receber no dia seguinte, uma outra moça do financeiro disse que não tinha nada em meu nome. Todos os que haviam participado do evento estavam de folga. Era outra equipe. Achei que era brincadeira. Ela afirmava categoricamente que não tinha pagamento nenhum; que eu não havia estado no local. Deu até um negócio na minha cabeça e duvidei até de mim, tamanha era a segurança da tal moça. Fui ficando nervoso, dizendo que tinha tocado no evento no dia anterior, mas não adiantou. Pedi a ela que ligasse para o financeiro, ela ligou e deu para ouvir pelo fone viva-voz do PABX (central telefônica do início dos anos 90) o diretor financeiro dizer que não tinha nada em meu nome. Insisti, já com medo do ambiente, e ela folheou pela quinta vez a pasta e disse:
– Moço, olhe para mim! (eu estava quase chorando). O único pagamento que tem aqui é para o Sr. Sebastião Tapajós! Caiu na hora minha ficha. Eis que nessa hora sai de uma das salas o filho que era meu super fã. Foi como ver um oásis num deserto! Ele bradou do corredor:
– Sebastião querido! A secretária já lhe deu café e água?
Eu, agoniado, disse num riso nervoso que havia um equívoco e que eu não era o Sebastião Tapajós. Ele explodiu numa gargalhada e disse “esses músicos e suas piadas”. Ele ainda afirmou que ele já tinha visto meus vídeos e que eu era o Sebastião. Ele falava isso segurando nos meus ombros e meio que me sacudindo como se eu estivesse em algum transe. Mas vai em cima vai em baixo e comprovei que eu era eu e os ânimos se acalmaram.
Conclusão: eles me contrataram sabendo quem era eu, mas achavam que meu nome era Sebastião Tapajós! Passei cinco dias para receber, até trocarem toda a papelada da contabilidade, inclusive o cheque que estava no nome do Tião.
Outra vez foi quando meu amado pai me chamou, eu estava estudando no meu quarto, que era meu, mas era de todo mundo também.
Tinha ido visitar meu pai um amigo muito exigente no que tange a tudo; aquele tipo de pessoa que só olha os defeitos e nunca elogia ninguém.
Papai querendo exibir o filho de 14 anos, violonista, disse pra mim quando cheguei na sala:
– Tavico! Toca pro meu compadre Salú umas músicas pra ele ver como estás desenvolvendo.
Como dizia Tó Teixeira, “Eu que estava acostumado a tanger as cordas do meu pinho, não tive porque me afligir. Toquei a “Sonata” de Rudolfe Straube, compositor alemão do período barroco, “Variações sobre um tema de Mozart”, de Fernando Sor, e para encerrar “Asturias” do espanhol Isaac Albeniz; três pérolas da literatura musical para violão de nível altíssimo e com grau de dificuldade muito alto. Os dois, meu pai todo orgulhoso, e ele, me olhavam e ouviam, atentamente. Ao encerrar a minha breve apresentação meu pai falou:
– Que tal, Compadre? Que achou do meu filho?
Compadre Salú respondeu com uma sobrancelha levantada e a outra abaixada:
– Dantas, ele até toca bem! Só tem essa cara dele de “besta” mas acho toca cem por cento mais ou menos, agora quero ver se ele é bom mesmo. Duvido ele cantar “Ave Maria do morro” de Herivelto Martins.
Como não cantei, minha performance na opinião dele foi pífia.
Poucos são aqueles que consomem a música pura, a música instrumental, desvinculada de letra.
Certa vez, muitos anos depois, já morando fora da casa de meus pais, estava estudando uma música linda de Bach, quando percebi que me observavam do canto da sala do apartamento as duas funcionárias diaristas, uma que ia uma vez por semana passar roupa e a outra três dias na semana. Era um dia em que as duas estavam no apartamento. Ouvi bem quando uma delas disse para a outra:
– Hei, ele não vai cantar?
E a outra prontamente respondeu:
– Êh mana té doidé? Isso é música de gente inteligente.
Segurei o riso e expliquei com detalhes, antes de efetuar o pagamento, o que era música instrumental e o que era música para instrumentos e voz. Falei da linha melódica e fiz comparações bem didáticas sobre o que é a execução melódica que sugere o canto nos instrumentos solistas (melódicos) e o acompanhamento em instrumentos harmônicos como piano e violão. Disse que a harmonia, o acompanhamento era como uma roupa e a melodia no corpo de uma pessoa. Elas ficaram me olhando e a cabeça pendendo para o ombro ouvindo atentamente. Ao final da detalhada e didática explicação e exemplos que dei eu falei:
– Então, entenderam?
E a resposta imediata foi:
– Ah, quer dizer então que o cantor só entra depois?
Respirei fundo e por absoluta falta de tempo tive que concordar. Não adiantou nada minha aparente expertise didática. Vida que segue.
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