0
 

No Dia Nacional do Livro, recomendo duas obras intimamente ligadas: o novo best-seller de Umberto Eco, “Número Zero” (Record, 240 páginas, R$ 35),  verdadeiro manual do mau jornalismo que se lê de um fôlego só, e “Cobras Criadas” (Editora Senac-SP), de Luiz Maklouf Carvalho, um calhamaço de 600 páginas que conta, pela primeira vez em minúcias e com documentação inédita, a trajetória de David Nasser e a história da revista ‘O Cruzeiro’, além de diversos personagens – jornalistas, políticos, artistas, empresários e policiais – de realce no cenário nacional em um passado recente.


A trama de “Número Zero” envolve um grupo de redatores, reunido ao acaso, que prepara um jornal, intitulado “O Amanhã” – destinado a não ser jamais veiculado, cujo objetivo real é desinformar, difamar adversários, manipular, elaborar dossiês no intuito de chantagear e arrecadar dinheiro para o seu dono -, que perpassa pela morte (ou não) de Mussolini, a Gladio, a loja maçônica P2, o assassinato do papa João Paulo I, o golpe de Estado de Junio Valerio Borghese, a CIA, os terroristas vermelhos manobrados pelos serviços secretos, o fim da Segunda Guerra.
Ambientado na Itália de 1992, no auge da Operação Mãos Limpas, espécie de Lava Jato italiana, o livro critica não só a imprensa sensacionalista, mas também o Estado corrupto e ineficiente e o processo de empobrecimento moral da sociedade, que assiste de forma passiva à banalização dos escândalos. Nada mais atual. 



Em certo trecho o editor diz à sua equipe: “O Amanhã, porém, vai imaginar e fazer uma série de previsões. E esse artigo de hipóteses e insinuações eu confio ao senhor Lucidi, que precisará ser hábil para, dizendo ‘é possível’ e ‘talvez’, contar de fato o que depois aconteceria. Com alguns nomes de políticos, bem distribuídos entre os vários partidos, ponha as esquerdas no meio também, dê a entender que o jornal está coletando outros documentos, e diga isso de um modo que faça morrer de medo até aqueles que lerem o nosso número 0/1 sabendo muito bem o que aconteceu nos dois meses depois de fevereiro, mas se perguntando o que poderia ser um número zero com a data de hoje… Entendido?”.  


E mais adiante: “Mas para passar opiniões sem dar na vista também há outros meios. Para saber o que se vai por num jornal é preciso,  como se diz nas outras redações, organizar a pauta. Notícia para se dar há infinitas no mundo, mas por que dizer que houve um acidente em Bergamo e ignorar que houve outro em Messina?  Não são as notícias que fazem o jornal, e sim o jornal que faz as notícias.”


E, ainda: ” Temos de nos limitar a divulgar suspeitas genéricas. Alguém aí está querendo levar vantagem e, mesmo que a gente não saiba quem é, o certo é que vamos amedrontá-lo. Isso já basta. Depois vamos faturar, ou melhor, o nosso editor vai faturar, na hora certa.”



“Cobras Criadas” retrata com crueza grotesca o jornalista David Nasser, seu patrão Assis Chateaubriand, passando por episódios com Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, Costa e Silva, Mário Andreazza, Roberto Marinho, Samuel Wainer, João Calmon, Carlos Lacerda, Hélio Fernandes, Leão Gondim, Amador Aguiar, Delfim Netto,  ‘O amigo da onça’, de Péricles, ‘O pif-paf’, de Millor Fernandes,  matérias pagas sem caracterização, ‘jogadas’ e lances de advocacia administrativa que ajudaram a fazer a fortuna de Nasser e de alguns de seus contemporâneos de ‘O Cruzeiro’. 


Eis o que diz, no livro, Freddy Chateaubriand – seu editor – sobre David Nasser:


Os fatos não eram importantes para o David, e sim a criatividade. Ele inventava coisas pra poder valorizar as reportagens. Foi o Manzon que ensinou isso pra ele. 


Eu era tolerante. Se você é jornalista e quer vender, você tem que ser escroto. É uma palavra meio forte, mas você não pode ter tanto prurido, senão não vende porra nenhuma. E nisso ele era o rei. Eu perguntava: “É isso?”. Ele dizia: “É, é”. Eu nem ia checar. Se vendia, eu não ia fazer busca. Vendeu, está certo. Nunca fiz pesquisa para apurar as reportagens de Jean Manzon e David Nasser. Eu aceitava, porque antes de tudo o Assis queria que vendesse.


Nunca escondi minha admiração pelo David. Eu sabia das sacanagens, das histórias que ele inventava, mas o principal é vender. E nisso aí eu sou um profissional. Vamos vender. Não me interessa se o leitor vai comprar gato por lebre. Tinha limites, é claro. Eu não ia fazer coisas tenebrosas e fora dos limites éticos.


A verdade é que as pessoas esperavam pelo texto do David Nasser como quem espera um jogo do Guga. Mas esse era bem o espírito deles: tudo mentira, tudo sacanagem. Tinham autonomia nas pautas. Eu tinha uma confiança ilimitada no David. Sempre achei ele mais inteligente do que eu, escrevia melhor do que eu. Então, se ele está dizendo que é bom, deve ser. Mas nunca me levaram no bico, porque eu também sou velhaco, é difícil me tapear. 


O Manzon tinha escrúpulo zero. nenhum escrúpulo. E o David, mais ou menos a mesma coisa. Se você for procurar escrúpulo em David Nasser e Jean Manzon você vai se f…. Não vai achar nunca. Talvez por acaso, em uma ou duas reportagens, porque calhou, não tinha o que alterar, e a verdade era mais interessante do que a mentira. O sucesso é que é importante. Veracidade? Quem está ligando pra ver se é verdade? Era um jornalismo de resultados. Viver de jornal era a coisa mais difícil do mundo.”

Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, presidente da Academia Paraense de Jornalismo, membro da Academia Paraense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, editora geral do portal Uruá-Tapera e consultora da Alepa. Filiada ao Sinjor Pará, à Fenaj e à Fij.

1ª amapaense na história do TRT8

Anterior

MP denuncia Wlad por improbidade

Próximo

Vocë pode gostar

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *