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Há um livrinho que muito tenho usado em aulas e debates, por considerá-lo essencial para compreender o pacto capital colonial nas relações de poder, chama-se “O pacto da branquitude”, de Cida Bento. 

Oficialmente, o debate sobre branquitude surgiu nos Estados Unidos, compondo os estudos étnico-raciais e fruto da militância do movimento negro. No Brasil, o termo foi usado a primeira vez por Gilberto Freyre, em 1960, porém de forma análoga a negritude- um grande erro, uma vez que negritude se configura como um movimento cultural e intelectual que valoriza a identidade, a herança e o orgulho dos povos africanos. Assim, como também se refere à conscientização e ao empoderamento da população negra.

Ainda Freyre, pregava a ideia de democracia racial, como se no Brasil existisse harmonia entre povos, camuflando toda violência e estratificação racial. Branquitude se refere a existência de um pacto social, que envolve de relações de poder, e que se perpetua entre gerações.

Cida Bento, que é psicóloga, nos ensina que as pessoas brancas não se enxergaram como racializadas, sendo raça o outro (o/a indígena,o/a preto/a), logo seu espaço social, suas características pessoais, seus bens e conquistas não estariam ligados a um processo sócio-histórico que envolviam política de terras, de bens e de acessos à direitos e cidadania, mas sim a uma conquista individual, fruto unicamente de mérito e de um esforço diferenciado, enfim, a falácia da meritocracia.

Este processo também ocorreria diante de suposta amnésia, na qual se esquece todas as violências extremas utilizadas para garantir seu lugar social, como uma passado escravocrata de estupros e barbáries, e se localiza a partir de uma identificação de superioridade, com atributos de sucesso, conquista, beleza e afins.

Logo, não me importa se meu avô explorou com garimpo a natureza e famílias, vidas, populações inteiras, tampouco que minha família continue se beneficiando da exploração alheia: o sobrenome associado a posses, fazer parte de uma elite, política e/ou econômica, costuma ser sentido como motivo de orgulho (as vezes, certeza de vontades atendidas, prestígio, impunidades e afins).

Na contramão, obviamente, há muitas violências. Os estudos decoloniais se somam nessa direção para falar de como a colonização produziu os humanos (especialmente, o modelo padrão europeu) e os não-humanos, aqueles e aquelas que retiramos a dignidade de humanidade, como as pessoas escravizadas e as indígenas. A colonização e o poder europeu só ocorreu com a criação do conceito de raça e com a exploração das Américas. Nesse balaio, importamos o binarismo de gênero, suas assimetrias forjadas (menino veste azul, menina veste rosa, simplificando) e todas as violências decorrentes dele: exploração infantil, alto índice de abusos sexuais, violência contra as mulheres, feminicídio, etc.

Maria Lugones, socióloga argentina, falecida em 2020, conceituava essa importação de colonialidade de gênero. O capitalismo colonial se mantem pelas relações de poder econômicas e políticas ainda hoje, mas também pela colonização do ser, do saber. Apagam a sabedoria de nossos povos ancestrais, nos empurram goela abaixo uma maneira de ser, de pensar, de sentir (emoções, sentimentos).

Voltando ao pacto da branquitude, Bento também nos diz que o pacto está em manter as relações de poder como estão ou perpetuar ainda mais as desigualdades. Exemplos não faltam, basta pegar a trajetória de políticos que passam seu legado de forma transgeracional, preparando seus filhos para futuras assunções, indicando seus pares para cargos de poder (também de pactos transgeracionais), ao passo que sucateiam políticas de moradia, saneamento e principalmente, educação. Manter pessoas vulneráveis sem condições de desenvolvimento é uma estratégia perversa do pacto da branquitude e que, em um acordo colonial, mantem as grandes oligarquias.

Comecei a escrever essa coluna sem saber para onde iria. Mas entendo bem minha aflição. O momento é tão angustiante que é difícil escolher a pauta: a violência contra os indígenas e quilombolas, o afronto à educação, as redes de comunicação vendidas com notícias tendenciosas aos líderes políticos, as fakenews ganhando força (a exemplo do pix), o ataque à Amazônia (com nossa estrada), a vitória de Trump, as bigtechs e suas políticas de ódio, a ascensão do nazifascismo nos EUA, o ataque as políticas de direitos humanos, especialmente as diversidades, as ameaças de invasões e bloqueios econômicos, brasileiras/os algemados chegando ao Brasil.

Talvez, meu intuito seja chamar vocês, leitores/as, a essa linha de conhecimento para que possamos com indignação combater o que vem. Ontem li a mensagem de Gustavo Petro, presidente da Colômbia, a Trump. Liberdade não é o que o capitalismo vende, a falácia que temos direito de escolha (que escolha? Se nem informações concretas e fatídicas temos acesso? Se algumas pessoas são fadadas a fome e miséria? Se poucos determinam o futuro do planeta? Se matamos por transfobia a cada 30 horas?), liberdade é ter consciência crítica, é alteridade, é conhecer a história de seu povo; é conseguir fissurar um sistema determinista de enrijecimento, também nos afetos que sentimos e temos sobre nós, sobre nossa relação com mundo.

Escuto de alguns/algumas intelectuais que ler indígenas é modinha e um tanto clichê. Contudo, praticamente sequer enxergamos as pautas, literatura e saberes indígenas. Clichê ou não, é irrisório o quanto consumimos, nos integramos, mobilizamos e reivindicamos pelos nossos povos, pela nossa América Latina. Prefiro essa moda, do que as demais. A invisibilidade é o racismo que habita e nós. A seletividade também. Alguns podem ser dar mérito de não gostar de falar destas pautas, como algo afastado ou estrangeiro a si, provavelmente pela identificação já explicada acima e pela ignorância de não entender como somos todos afetados mutuamente. Outros não tem opção. Honestamente, em breve, não sei nem o que chamaremos de escolha e de opção.

Particularmente, encontro nas dissidências, e na filosofia indígena, pistas para novas formas de relação, de luta e de esperança. Penso que conhecimento, ação, coletividade e esperança sejam palavras-chaves para os tempos atuais. Precisamos nos emocionar com o que temos de belo, porque muito temos. Que possamos fazer história, música e poesia, mas que também saibamos agir, nos organizar para preservar o que é nosso, mesmo que pareça tão difícil.

Bárbara Sordi
Psicóloga, Psicanalista, Especialista em Psicologia Hospitalar da Saúde, Facilitadora de Círculos de Paz, Professora da Universidade da Amazônia, coordenadora do Projeto “Sobre-viver às violências” e do Grupo de estudos “Relações de gênero, Feminismos e Violências”, Mestre e Doutora em Psicologia pela Ufpa e coordenadora/assessora da Vereadora Lívia Duarte. Mãe da Luísa e Caetano, Feminista Terceiro Mundista.

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