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Em 1969, um ano após o cancelamento do Festival de Cannes em solidariedade ao Maio de 1968 (três meses antes, por causa da demissão de Henri Langlois do Centro Nacional de Cinematografia, três mil pessoas foram às ruas de Paris para a manifestação que ficou conhecida como Batalha da Cinemateca), foi fundada a Quinzaine des Réalisateurs que, com uma seleção paralela, um aspeto não competitivo e aberto ao público, seleciona filmes sem restrições técnicas de gênero, formato, duração e proveniência. É neste espírito que estreia, hoje, Medusa, da realizadora brasileira Anita Rocha da Silveira que, assim como a criatura mitológica, grita a raiva de milhões de mulheres que são punidas diariamente sob o pretexto de não serem “puras”.

A semelhança com a realidade brasileira nesta era neofascista é aterrorizante. O problema da violência de gênero no Brasil, onde ocorrem cinco feminicídios por dia, não é de hoje, mas a legitimação do discurso de ódio e preconceitos da extrema direita contribui para o retrocesso que avança em um país tão diverso e, vejam só, onde a maioria das mantenedoras das famílias são mulheres. Ainda assim existem mulheres ocupando cargos eletivos e administrativos públicos que dizem lutar pelo fim do feminismo em razão de noções religiosas que pregam o oposto do amor e da solidariedade que é suposto ser o caminho da espiritualidade, que são prova cabal da total ignorância político-social que as eleições de 2018 proporcionaram ao Brasil. É realmente “de gritar”, como faz a famosa pintura de Caravaggio e as personagens perseguidas pela cruzada evangélica retratada no filme.

Ontem mesmo um vídeo de um DJ a espancar a esposa em frente à filha bebé tornou-se viral nas redes sociais e portais de notícias. O agressor, que está em liberdade, continuou a agredir verbalmente a mulher nas redes sociais, onde ganhou mais de 100 mil seguidores. Sim, pelos vistos, ainda há pessoas – inclusive mulheres – que acham que um monstro desses deve ser ouvido e, pior, de que é possível haver um motivo que justifique tamanha barbárie. Dói profundamente em meu peito não me impressionar mais com a mentalidade de grande parte do povo brasileiro que, assim como um sujeito no vídeo, observa de braços cruzados tamanha violência com semblante de normalidade.

Aliás, a violência contra a mulher acontece em qualquer país, em qualquer contexto econômico social. Vivemos no terror constante, por mais bem estruturadas e conscientes dos nossos direitos que sejamos. Portugal, visto pelo mundo inteiro como um país pacífico, nos últimos meses têm deixado nós mulheres aflitas de estarmos sozinhas nas ruas por causa de tantos relatos de violações e tentativas de. Há poucos dias a cantora e flautista Catarina Valadas postou em seu Instagram a foto do olho roxo, inchado, após ser agredida por um homem na região central do Porto, que a agarrou à força, apalpou seu corpo e tentou tirar sua roupa enquanto ela caminhava para casa após chegar ao Campo 24 de Agosto no último autocarro vindo de Lisboa. O indivíduo fugiu, a polícia declarou que vai ser complicado encontrá-lo e Catarina, como milhões de outras, carregará o trauma por toda a vida.

Voltando para a arte que imita a vida, neste contexto em que os direitos humanos e as artes são achincalhadas, reprimidas e sucateadas, é um suspiro de esperança ver obras em que mulheres são a maioria, em frente e atrás das câmeras, alcançar projeção e reconhecimento internacional. Além de realizado e escrito por Anita Rocha da Silveira, Medusa foi editado por Marília Moraes, color grading de Cassiana Umetsu, e produção de Mayra Auad, Vânia Catani e Fernanda Thurann (que também é atriz e tem em sua trajetória uma forte ligação com o Marajó através de seu trabalho com a realizadora e professora franco-paraense Monique Sobral de Bouteville), através da Brisa Filmes.

Segundo o site Mulher no Cinema, escrito pela jornalista Luisa Pécora, apenas 16% dos filmes brasileiros lançados até 2017 nos cinemas foram realizados por mulheres. Esta minoria não é exclusividade brasileira, entretanto. Em 2020, as mulheres ocupam 21% das posições de realização, produção, roteirização, edição e cinematografia dos cem filmes de maior bilheteria nos Estados Unidos, de acordo com o Center for the Study of Women in Television and Film da Universidade de San Diego.

Medusa é um filme que retrata a cobrança que todas nós mulheres sofremos para aparentarmos a perfeição e, ainda assim, com todos os nossos esforços, sermos subjugadas e subapreciadas unicamente pelo fato de nosso gênero. Está na hora de entendermos que gritar é preciso. Gritar não é replicar violência. Gritar para por para fora o que nos aniquila por dentro. Gritar para nos fazermos ouvir – e entender – de uma vez por todas.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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