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A imagem do jovem indígena Tawy Zoé, que carregou o pai, Wahu Zoé, por seis horas dentro da floresta, atravessando morros, igarapés e incontáveis obstáculos até o ponto de vacinação contra a Covid, e de lá pôs o pai nas costas novamente e andou por mais seis horas até sua aldeia viralizou na internet e mostrou ao mundo uma lição de sabedoria ancestral. A foto é do neurocirurgião santareno Erik Jennings Simões, que, a pedido dos indígenas e da Funai, se tornou, em caráter voluntário, o coordenador de saúde do povo Zo´é há quase duas décadas e atesta: em quase dois anos de duração da pandemia, nenhum Zo’é foi contaminado pelo novo coronavírus. O desafio de prestar assistência sem destruir a cultura e a autonomia desse povo impôs a estratégia de atender na própria floresta, evitando o preconceito na cidade e epidemias.

O emblemático exemplo remete à lenda, de tempos imemoriais, que conta uma história de amor entre dois indígenas. Ele, Uiná, da etnia Taulipang; ela, Acami, cunhã Macuxi. Casaram e viveram muito felizes. Nunca se separavam: se ele ia pescar, roçar ou caçar, ela ia também; se ela ia se banhar, ele ia junto. Mas Acami ficou doente e não mais pôde andar. Uiná, então, armou uma tipóia em seus ombros fortes e assim a carregava consigo para toda parte. Um dia, sentiu que o precioso fardo pesava demasiadamente. Ela tinha falecido. Abriu uma grande cova à beira de um igarapé e se enterrou com o seu amor de toda a vida. Após nove luas, naquele local brotou uma linda, diferente e graciosa planta de folhas na cor verde escuro brilhante, trazendo em seu centro matizes de coloração amarelada ou cor-de-rosa, e no verso de algumas destas folhas uma menor, com o interior avermelhado. Os parentes do casal, ao descobrirem a misteriosa planta, logo compreenderam que ali se manifestara o grande milagre de transformação e continuidade do amor e da vida. Tamba-Tajá! Foi o nome imediatamente intuído por todos, e assim se eternizou, e o seu cultivo e utilização como amuleto vivo do amor se espalhou por toda a Amazônia.

O médico Erik Jennings tem renome internacional e poderia atuar nos melhores hospitais do planeta, mas escolheu morar e trabalhar em Santarém e enfrentar barreiras geográficas e carências de todo tipo para cuidar da saúde dos amazônidas. A floresta impõe grandes desafios à medicina, entre eles a diversidade cultural de seus povos. Erik aprendeu a falar tupi guarani e até a pilotar aviões pequenos, para driblar as dificuldades de acesso. São 290 Km de Santarém até a terra Zo´é, trajeto cumprido em uma hora e quinze de voo, só de ida.

Em seu livro “Paradô: Histórias Vividas por um Neurocirurgião da Amazônia”, Erik Jennings relata sua vivência e reflexões sobre a medicina e a vida na Amazônia. Quando começou a trabalhar na região, em 1999, era o único neurocirurgião para 950 mil pessoas. Hoje a proporção é de um para cada 300 mil e Erik forma neurocirurgiões no programa de residência médica oferecido pelo Hospital Regional do Baixo Amazonas, na esperança de contribuir para que seja alcançada a média recomendada, de um especialista para cada 100 mil habitantes.

Um de seus relatos emocionantes é de um resgate em Oriximiná. O aeroporto não tinha iluminação para pouso à noite. Para salvar a vida de uma pessoa gravemente doente, todo mundo que tinha carro na cidade foi iluminar a pista com os faróis e pisca-alerta ligados, enfileirados. Até hoje, aliás, a maioria dos aeródromos do Pará não tem balizamento noturno. Se alguém precisa ser removido à noite, não há condições de pouso de aeronave. A maioria dos municípios também não tem hospital equipado para exames e cirurgias e nem remédios e especialistas suficientes. O serviço de resgate da Sespa é executado por empresa terceirizada ou pelo Grupamento Aéreo da Segup, que nem sempre conseguem chegar a localidades mais distantes, por falta de autonomia de voo. Uma alternativa seria o uso de hidroaviões, e legalizar pistas clandestinas em pequenas vilas e cidades.

Ribeirinhos remam por horas e até dias para levar um paciente ao hospital mais próximo. Situações assim são corriqueiras. As pessoas morrem por coisas banais, como picadas de cobra e quedas de árvores. O abandono secular da população é agravado pelo desmatamento e garimpos ilegais, além de barragens hidrelétricas, entre tantas violências sofridas.

A história de como o médico Erik Jennings se tornou protetor dos Zo’é é impactante, contada por ele em seu livro. Em meio a uma tempestade, uma árvore enorme desabou e tombou sobre a pequena maloca onde vivia Kusi, 56 anos, e seus dois filhos, Apãn e Namihit.  Apãn morreu na hora e Kusi, gravemente ferida, com afundamento no crânio, precisou ser levada para a cidade acompanhada de Namihit, 18 anos. Os dois nunca tinham saído da floresta e não falavam uma palavra em português. Antes do pouso em Santarém, Erik e sua equipe vestiram uma bata em Kusi, e vestiram e calçaram Namihit. Após uma longa cirurgia, a paciente foi levada a uma enfermaria, onde viu Fátima, também operada na cabeça, e Namihit quis saber se uma árvore caíra na cabeça dela. Mas Fátima fora ferida com um facão por seu próprio marido, explicou o médico. O jovem indígena ficou indignado e nunca mais foi o mesmo após o contato com uma das grandes doenças do homem branco: a violência. Erik sabia que para um Zo’é o ambiente quente e barulhento do hospital, a comida estranha, a ausência da família e da terra são traumáticos, além do sofrimento psicológico. Operou num dia e no outro levou Kusi e seu filho de volta à aldeia, onde teriam junto de si os parentes, falando a mesma língua.

A população Zo’é está estimada em 310 pessoas organizadas em 19 malocas, e a Frente Cuminapanema – unidade da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai é responsável pela assistência à etnia. A Terra Zo’é tem 6,86 mil quilômetros quadrados e está regularizada desde 2009. Eles vivem exclusivamente de suas terras e mantêm autonomia cultural e socioeconômica. São seminômades e caçam com arco e flecha. A maior parte não usa vestimenta, mantém a própria língua e desconhece a dieta do branco, não ingerindo sal ou açúcar, o que lhes proporciona boa saúde, sem diabetes, alto índice de colesterol, anemia e nem obesidade mórbida.

Na década de 80, missionários levaram doenças que mataram metade da etnia. Por conta disso, a primeira providência é vacinar. Eles aceitam bem, não há resistência, conta o médico, que foi vacinado contra a Covid por um Zo’é. Raciocinando que se os indígenas tiverem que se deslocar para receber vacinas e medicação terão que andar dias na floresta sem caçar e sem comer, o que resultará em desnutrição, o médico ajudou a construir um pequeno hospital no território, com materiais da floresta.

Para Erik, não existe oposição entre ciência médica e conhecimento tradicional. A pedido do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos (ACNUDH), o médico contribuiu para a elaboração de um protocolo de saúde aplicado a povos isolados e de recente contato na América do Sul. Publicado em 2012, o documento – Directrices de protección para los pueblos indígenas en aislamiento y en contacto inicial – reúne contribuições também de representantes da Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Venezuela. Em 2018, as diretrizes da ONU foram incorporadas à legislação brasileira por meio de uma portaria conjunta dos Ministérios da Saúde e da Justiça.

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