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“Se a pobreza fosse um local, uma paisagem hostil para onde fôssemos deliberadamente empurrados ou com que topássemos acidentalmente, seria uma floresta amaldiçoada: um matagal úmido e sombrio suspenso no tempo. Os ramos arranham-nos, os troncos tapam-nos a visão, os espinheiros prendem-nos e impedem-nos de avançar. Quando se logra remover um obstáculo, surge de imediato outro. Arrancamos a pele das mãos a abrir caminho esforçadamente e a libertar o trilho noutro sítio, mas mal viramos as costas, as árvores cercam-nos de novo. A pobreza drena-nos a vontade, pouco a pouco. Mas, para já, com a moedas a tilintarem no bolso, Arthur sente-se esperançoso. Um dia vai sair desta cidade e viajar para longe, até os confins da Terra, se preciso for, onde as fronteiras entre água e terra se fundem e confundem e as pessoas nunca saberão de que penúria abjeta ele é oriundo.”

O excerto acima foi extraído do belíssimo “Também há rios no céu” (no original “There are rivers in the sky”), livro da multipremiada autora turco-britânica Elif Shafak (1971), escritora consagrada com 19 obras publicadas das quais 12 são romances, traduzida para 55 idiomas, defensora ativa e ferrenha dos direitos humanos e da liberdade de expressão, em especial dos direitos das mulheres e minorias, recentemente considerada pela BBC uma das personalidades mais influentes e inspiradoras da atualidade, alguém que contribui para um mundo melhor.

No livro este trecho conta a história de Arthur, menino pobre e indigente da Londres do Século XIX, portador de dons especiais, memória prodigiosa e impressionante capacidade de aprendizagem. Egresso do caos urbano e da miséria, o adolescente arruma emprego numa tipografia e acaba trabalhando na edição de livros, “lanternas de papel que nos fornecem luz em meio ao nevoeiro.” Na vida real, contudo, o texto me lembrou, metáfora triste e dolorosa, a relação da Amazônia com o resto do Brasil, o modo como a região é vista, incompreendida e vilipendiada, num colonialismo anacrônico e indisfarçado que só traduz ignorância e desconexão com a realidade.

Todas as moléstias nacionais parecem estar por aqui, nesta “floresta amaldiçoada, matagal úmido e sombrio suspenso no tempo”, habitado por gente invisibilizada e irrelevante que supostamente vive em palafitas, se locomove em canoas, se alimenta do extrativismo mais rudimentar e lança seus detritos a céu aberto, num contraste monumental com o “Brasil Maravilha”, país que dá certo, virtuosa pátria assentada de Brasília para baixo, onde o clima é mais ameno, as pessoas pretensamente mais cultas e desenvolvidas, o pensamento mais instruído e o trabalho mais profícuo, mola propulsora da nação cujo fardo maior é sustentar e carregar às costas a gente inútil e incômoda do longínquo e insalubre extremo norte, povo de latitude e serventia próximas do zero.

Ledo engano, discurso vazio, séculos de estupidez, miopia e desinteligência!

Essa associação de ideias me ocorreu em razão da exibição do programa Profissão Repórter, da Rede Globo de Televisão, edição do último dia 29 de julho, espetáculo de desfaçatez, sensacionalismo e mau jornalismo. Modelo perfeito e irretocável de tudo o que não se deve fazer no exercício do nobre ofício de informar.

Segundo a chamada gravada pelo jornalista Caco Barcellos, faltando menos de quatro meses para a Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (COP30), o programa mostraria ao grande público os impactos das obras em curso na cidade e o legado que o evento deixará aos belenenses. Não obstante, o que se assiste em seguida são trinta e cinco minutos de depreciação, descredibilização e menosprezo à cidade e, via de consequência, aos seus habitantes.

Não há uma cena panorâmica da capital paraense, uma imagem captada com boa vontade suficiente para enaltecê-la. Não há um dado jornalístico pertinente que traga em si, com credibilidade e isenção, o confronto equilibrado das muitas singularidades que existem em cada fato ou notícia. O programa parece uma chanchada burlesca feita sob encomenda por adversários políticos em plena campanha eleitoral, maximizando narrativas para descredenciar a cidade e desqualificá-la perante a opinião pública.

Há, isso sim, um hiperfoco nas mazelas, nos problemas e nos dramas que todos sabemos existir, desafios antigos e notórios que a cidade enfrenta e precisa vencer. Não se quer aqui tergiversar, desviar atenções ou criar impressões oníricas sobre Belém, de modo algum, mas não se pode admitir que a maior cidade do norte brasileiro, um dos principais centros urbanos da Amazônia, seja retratada como se nela nada houvesse de positivo, belo, culturalmente rico ou ambientalmente importante.

Longe de ajudar Belém a superar seus dilemas, o Profissão Repórter do dia 29 de julho de 2025 apenas escancara o quanto de enjeitamento o Brasil nutre por si próprio, notadamente por seus rincões considerados periféricos, espaços marginais à fantasia de progresso e independência do sul-sudeste do país.

Uma pena! Tempo, recursos e energia gastos à toa, desperdiçados para criar propositalmente a caricatura distorcida de uma cidade que muito tem a contribuir com o progresso nacional, e que poderia estar em estágio muito mais avançado de desenvolvimento humano, econômico e social não fosse, entre tantas outras idiossincrasias, a manutenção dos privilégios e interesses escusos que condenam o país ao ostracismo, evitando que ferrovias, rodovias e portos aproximem a produção agrícola nacional dos grandes mercados globais, dificultando a abertura de novos canais de escoamento pelo Atlântico Norte e pelo Pacífico, preferindo manter estruturas arcaicas, viciadas e notáveis pela elevação desenfreada do Custo Brasil.

Conquanto pudesse ser uma oportunidade de união, diminuição de desigualdades e correção de rumos, a COP30 vem sendo usada pelos insatisfeitos e contrariados para acirrar ânimos e aprofundar abismos, especialidades dessa gente pequena que gosta de debater e teorizar problemas à distância, un petit comité, sem se misturar ou contaminar por eles.

Mas não há de ser nada, já nos acostumamos a isso, já não nos dói na pele ou no coração. Enquanto os artífices da desnotícia se ocupam de nos diminuir, seguiremos singrando nossos rios em cascos de madeira, convivendo com onças, cobras, jacarés e capivaras, tomando açaí na cuia e defecando no mato. Tempo vai, tempo vem e razão assiste, nesse particular, ao acadêmico Ailton Krenak: “Se o colonialismo nos causou um dano quase irreparável, foi o de afirmar que somos todos iguais.”

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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