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Às vezes a memória nos trai e até achamos que lembramos algo que não aconteceu. Talvez meus irmãos tenham visto. Eu era pequeno demais para guardar. Mas é que havia um vizinho no prédio ao lado do meu. Garoto danado. Quando ia passear na praça, a mãe colocava uma coleira, sim, uma coleira para poder acompanhar seus passos rápidos, mudanças de direção e pique. No último andar do prédio vizinho, havia uma beirada sem proteção, não sei a razão. Alguém gritou e vimos Levindinho passeando naquela beirada, livre, brincando, olhando aqui e ali. Um perigo absurdo ao qual ele não parecia dar atenção. Ouvíamos a correria de gente subindo as escadas para resgata-lo. Lembro de seu rosto sorridente, tranquilo, o corpo desafiando o equilíbrio, folha solta ao vento e uma felicidade estonteante. Eu e meus irmãos lembramos até hoje, mas confesso que não sei se lembro da coisa contada ou se vi, mesmo. Mas é que li o livro mais recente de Isadora Salazar e seus contos, ilustrados de Thithi Johnson. O título é perfeito, “AquarelaBang” e é assim que me senti ao ler e ver o resultado da parceria. O Bang vem dos contos, talvez contossonhos, memórias aplicadas à própria poesia, pura, livre, com as aquarelas explodindo suas cores em ilustrações. É isso, “AquarelaBang”, que em um momento é “HoráciaBiBang era em si uma força que permanecia equilibrada em seus enormes saltos de agulha sobre o parapeito de uma janela de seu apartamento no 13º. andar de um prédio muito claustrofóbico e antigo”. Esse trecho me deu um gatilho sobre a minha vida. Lembrei do Levindinho, lembrei de mim. Hoje, aos 70 anos de idade, olho para o caminho que percorri e percebo como arrisquei tudo, o tempo todo. Eu procurava o que me faria feliz. Procurava meu lugar no mundo. Tinha meu trabalho, ligado à música, algo que me tomou a vida inteira. Mas apareceu o teatro, a poesia. Eu procurava. Fiz vestibular para Engenharia Civil e cursei, até aparecer Jornalismo, em que me formei. Convivia bem nesse caos, entre várias solicitações, várias procuras que somente depois dos 40 foram se estabilizando. E em tudo, a convivência do risco. Segurança zero. A tarefa de matar leões, diária. Penso que passei a vida dançando no vento feito folha, sorridente e feliz como Levindinho, dando mais importância à alegria do que ao perigo e a segurança. O que me amparou, sempre, foi a cultura a estrutura que meus pais me deram. Ler todos os livros e revistas. Assistir a todos os filmes e peças de teatro. Ouvir todas as músicas, em todos os estilos. Olhar para o mundo e a curiosidade por tudo. Quando virei compositor de trilha sonoras e jingles, repliquei tudo o que havia ouvido em todos os lugares. Quando escrevi meu primeiro romance, estava brincando, me divertindo e aos poucos gostando cada vez mais de brincar, o que seria o próximo capítulo e até onde aqueles personagens me levariam. Eu estava procurando. Hoje, com muitas questões saciadas, ainda procuro. Procuro nas mesmas fontes e nas novas, que foram surgindo. Lembro de comprar meu primeiro notebook. Da sequencia de teclas e o barulho da ligação para internet. Daquela janela pro mundo que se abria. Dos celulares que apelidávamos de muçuãs, tão parecidos que eram. Em um momento de “Convite de Casamento”, peça que escrevi para o Cuíra, alguém tentava ligar mas não havia sinal. Todos riam reconhecendo-se. E hoje ainda não há sinal em vários lugares. Mundo que roda e volta ao princípio. Meu Levindinho continua na beirada, como aquela negaceada dos bêbados que nunca vão ao chão, e todos gritam ôpa! E o livro de Isadora e Thithi é uma delícia.

Edyr Augusto Proença
Paraense, escritor, começou a escrever aos 16 anos. Escreveu livros de poesia, teatro, crônicas, contos e romances, estes últimos, lançados nacionalmente pela Editora Boitempo e na França, pela Editions Asphalte. Foto: Ronaldo Rosa

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