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“O colégio era grande como uma cidadela, todo fechado em muros altos. Por dentro, pátios quadrados, varandas brancas entre pitangueiras, numa quietude mourisca de claustro. De um lado vivíamos nós, as pensionistas, ruidosas, senhoras da casa, estudando com doutores de fora, tocando piano, vestindo uniforme de seda e flanela branca. Ao centro era o ‘lado das irmãs’, grandes salas claras e mudas onde não entrávamos nunca. E além, rodeando outros pátios, abrigando outras vidas antípodas, lá estavam as casas do orfanato, onde meninas silenciosas, vestidas de xadrez humilde, aprendiam a trabalhar, a coser, a tecer as rendas dos enxovais de noiva que nós vestiríamos mais tarde, a bordar as camisinhas dos filhos que nós teríamos, porque elas eram as pobres do mundo e aprendiam justamente a viver e a penar como pobres. Uma proibição tradicional, baseada em não sei que remotas e complexas razões, nos separava delas. Só as víamos juntas na capela, alinhadas em seus bancos do outro lado do corredor, quietinhas e de vista baixa, porque as regras que lhes exigiam modéstia, humildade e silêncio eram ainda mais severas do que as nossas.”

Assim, isoladamente, o texto acima parece parte de algum tratado de história ou sociologia, excerto de um ensaio antropológico sobre as origens da sociedade brasileira, sua evolução e seus pilares socioeconômicos, aparentemente assentados na dicotomia intransponível entre ricos e pobres, os que são servidos e aqueles que os servem – jovens abastadas, com acesso à ciência e às artes, bem vestidas e alimentadas, em contraponto àquelas que, subservientes e respeitosas, contentam-se com retalhos e ofícios, tudo isso sob a regência austera do estado, que impõe as regras de conduta, e da igreja, que lhes faz acreditar no destino.

Em perspectiva, é como se estivéssemos condenados perpetuamente, por sentença irrecorrível, a um divisionismo estanque, ciclo vicioso de segregação em que mobilidade social e diminuição das distâncias entre desprovidos e afortunados fossem apenas elementos do conceito de utopia.

Mas não é esse o caso; o texto em destaque não foi recortado de obras do gênero. Cuida-se, em verdade, de um belo e eloquente trecho de “As Três Marias”, romance publicado em 1939 pela escritora cearense Rachel de Queiroz (1910-2003), retratando o cotidiano de Maria Augusta, Maria José e Maria da Glória, meninas reclusas num internato para moças na Fortaleza do início do Século XX, dirigido com mão de ferro por freiras de berço europeu e, corolariamente, velhos hábitos típicos do velho mundo.

Oriundas de núcleos familiares diversos, marcados por dramas, angústias e vicissitudes das mais variadas, as amigas aproximam-se e vinculam-se de tal modo, a tal ponto, que passam a ser reconhecidas como tríade inseparável, como fossem estrelas identificadas por linhas imaginárias, constelação de passado, presente e futuro, dimensões de tempo e espaço que a autora explora com lirismo, profundidade e impressionante rigor técnico e de estilo, prosa cristalina que flui feito água fresca e corrente.

Em cada vida uma história, uma jornada, desfechos inevitáveis. Em comum os sonhos das meninas e a realidade das mulheres do nordeste do Brasil em tempos de estoicismo compulsório, obrigadas todas a viver “numa quietude mourisca de claustro”, contemporâneas do reconhecimento do direito ao voto.

Partindo da clausura do Colégio da Imaculada Conceição a polêmica escritora, tradutora, jornalista e dramaturga alencarina, expoente do modernismo e do regionalismo na literatura brasileira, nos conduz a uma viagem pelos recônditos de um país indisfarçado, ostensivamente machista, veladamente racista e conservador por conveniência, cujos grilhões ela própria ajudou a romper – não por acaso foi a primeira mulher a integrar a Academia Brasileira de Letras.

Na metáfora cheia de poesia, na antítese desconcertante e na prosopopeia que encanta, Rachel faz por merecer um julgamento mais tolerante, senão de seu ativismo político (o que é compreensível), ao menos de seu legado literário (o que é justo e necessário). Heróis e vilões há por todos os lados, em todas as vertentes, e todos julgam ter certa razão mesmo quando estão errados. Não custa lembrar que chegou a ser presa durante o Governo Vargas, sob a acusação de ser comunista, permanecendo dois anos no cárcere.

Não pode ser bruxa quem escreveu O Quinze, As Três Marias e Memorial de Maria Moura, e só por isso já seria descabido lançá-la ao fogo, qual Torquemadas reencarnados e intempestivos, inobstante alguns de seus livros tenham sido queimados em praça pública.

A literatura, em sendo humana, é sobretudo contradição permanente, embate constante, concordância e discordância na mesma medida. Sem virtude e vício não há drama, romance ou poesia, e sem drama, romance ou poesia – sem literatura, portanto – não há vida, até “porque a vida” – como escreveu Raquel em Dôra Doralina – “é toda um doer.”

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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