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Pegava frases soltas e as fazia suas. Sempre quis escrever, mas não o sabia fazer. Então tomou para si este hábito: roubar palavras. Fazia sem o menor escrúpulo, afinal de contas, se estavam ali, era para terem algum uso. Começou aos poucos, é bem verdade, a medir toda e qualquer palavra que tomava como sua. Mas conforme o tempo passava, mais era prazeroso o sabor que elas na boca davam, e assim começou a carregá-las nos bolsos, nas bolsas, até o ponto de suas mãos estarem sempre ocupadas com dizeres que já nada diziam. Não percebia, porém, o quanto todas aquelas palavras eram vazias, e de tanto fazê-las fluir um dia se afogou. Na manchete do jornal, o letreiro: “morreu a engolir tudo o que disse”. Viveu sem pensar realmente no que queria dizer. 

“Tá calor”, pensou ao fechar o jornal. Queria dar uma volta, mas não com este sol na cara. Que pena. Se estivesse frio, também não iria, afinal de contas ninguém merece levar com vento na cara. “Vou continuar aqui no meu sofá. Vai que tomo gosto pelo mundo e resolvo sair por aí a roubar palavras até me afogar? Não não. Vou pensar em tudo, em tudo o que há neste mundo, mas nunca o vou dizer. Prefiro morrer seco”. E, de tão seco que ficou, todo se partiu, e acabou no lixo. Na manchete do jornal, o letreiro: “sem nada dizer, foi jogado fora”. Viveu sem dizer o que deveria.

O mundo continuou lá. Ou aqui, já nem sei mais. As plantas que emolduram os caminhos mudam, de vez em quando. Dão flores, dão frutos, espetam com espinhos. E ninguém mais lembra de quem secou ou se afogou. Nem as sombras, que também estão sempre a mover com as novas estações que ou prendem ou soltam toda a gente para a vida. Depois de algum tempo já nada mais é o mesmo, mas tudo aparenta ser exatamente igual. Incrível.

Acordei com o corpo completamente molhado de suor. Com o que será que estava a sonhar? Não consigo lembrar. Gostaria de rever tudo o que aconteceu. Quem sabe assim consiga sonhar de novo. Um dia, talvez. Mas levanto, tenho de me enxugar. Tenho de molhar a garganta. Tenho de esquecer o que queria manter vivo na memória para quem sabe amanhã escrever com todas as palavras que ousei roubar se quero mesmo implodir com tanta secura. Preciso, não quero, tentarei quando puder. Vou ler o jornal. Mas só depois de dormir.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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