Acho que o sonho de todo artista é ter sua obra analisada sob o ponto de vista acadêmico, por especialistas. “It’s a long way – O exílio em Caetano Veloso faz tudo isso, sobre três discos do baiano em um momento grave de sua carreira, em que junto a Gilberto Gil, foi preso na ditadura e enviado ao exílio na Inglaterra. Caetano é o ídolo de minha geração e hoje percebo que meu pouco conhecimento cultural me deixou por alguns anos sem notar as nuances das canções, ainda que apaixonantes por sua melodia, poesia e arranjos. “Irene”, por exemplo, dedicada à sua irmã, teve boatos que a tal risada era uma maneira de falar da metralhadora de Che Guevara. Nada disso. Foi a única música composta pelo baiano quando estava preso. “Caetano Veloso”, capa branca e apenas a assinatura em p&b, mostrava que alguma coisa estava fora da ordem. A essa altura, Caetano e Gil já estavam livres da cadeia, mas em confinamento em Salvador, tendo de apresentar-se diariamente ao milico do momento. Precisavam de dinheiro, sem poder trabalhar. A gravadora tentou gravar, mas os estúdios não tinham capacidade. Gravaram apenas voz e violão. Gil sempre ao violão e alguns vocais. Rogério Duprat, genial, fez todos os arranjos em SP. Corretamente, foram suprimidos detalhes técnicos acadêmicos do trabalho, que iria torna-lo mais chato. Há algumas opiniões que vão muito além do que o próprio compositor pensava, mas a Língua Portuguesa é vasta. Juntaram “Empty Boat” com “Os Argonautas”, bem como “Marinheiro Só” e a presença do mar. Bethania falou-lhe de Fernando Pessoa e ele compôs o fado. “Não Identificado”, feito para Gal, contém a imagem do disco voador, que voltará em “London London”. Há uma melancolia permeando o trabalho, a sensação de estar sendo morto como artista. E vem o disco gravado na Inglaterra. Gil saiu-se melhor, grande violonista e antena captando a revolução musical que acontecia na velha Albion. Há mais melancolia ainda, “I feel a little more blue and then”. Na cadeia, Caetano distraia-se cantando “Hey Jude”, principalmente aquele final “better, better, better ah, lalalala”. E foi daí que pegou “I wanna know things, are getting better, better, better, Bethânia”. “London London”é triste, mas já mostra o andar pelas ruas de Londres, Quando chegou, passou muito tempo trancado, depressivo. Também surgem influências fortes dos Beatles, mais claras ainda no “Transa”, que já apresenta alegria, deixando de considerar-se “morto”. A banda formada por brasileiros. Macalé ao violão. Ensaios sem fim. Quando ouvi “Transa”, gostei direto. Aqui no Brasil houve muito barulho pelo disco. Todos precisavam ouvir. Havia expectativa também na Inglaterra. Mas ele voltou e pronto. Em declaração recente, Caetano comenta que a inserção de músicas famosas, seja da Bahia, seja de compositores brasileiros de sua geração, foi algo dos ensaios e do que ia pintando. Mas os especialistas examinam todas as citações, encontrando significados. Mesmo que não tenham sido pensados assim, é muito interessante discutir cada um deles. Os Beatles quando canta “It’s a long a winding road”, no meio de “It’s a long way”. As músicas da capoeira, dos marinheiros em “o vapor de Cachoeira não navega mais”. “Lalaladáia sabatana Ave Maria”. “Eu agradeço ao povo brasileiro, norte, centro, sul inteiro, onde reinou o baião”. E Gal aparece ao fundo com “Saudosismo”. “Oh, coffee’s morning, singin an old Beatles song”. “Triste Bahia” é uma das maravilhas. E vem com Gregório de Matos, “oh quão dessemelhante”. E You don’t know me, bet you never get to know me”. “Nine Out of Ten” talvez seja a mais pop sob o ponto de vista internacional, percebendo a chegada do reggae que pulsava próximo à sua casa em Notting Hill. A turma de brasileiros foi a muitos concertos. Bebeu Dylan, Hendrix, Miles Davis, direto na fonte. Levou longos papos com o então jovem David Gilmour. A instrumentação excelente, a partir de Macalé, perfeitamente executada e hoje, após ler detalhes, ouço novamente para entender o que eu apenas achava bonito, criativo, para sacar o muito que havia embutido no material. Enfim, recomendo vivamente.
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