A fiação elétrica emaranhada aos galhos de árvores na frente da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, entre as ruas Padre Prudêncio e Aristides Lobo, no bairro da Campina, em Belém do Pará, é o retrato da tragédia anunciada. Além do descaso com vidas humanas e a memória do município, do Estado e do país, por óbvio. A qualquer momento um incêndio de grandes proporções pode acontecer, ceifando vidas e transformando em cinzas a igreja, uma das edificações históricas da cidade, datada do século XVIII, entre 1725 e 1800, joia da arquitetura parauara, projetada pelo italiano Antonio Landi e construída com muito sacrifício e devoção pelos escravos negros, que durante quase dois séculos, depois de cada dia pesado de trabalho, caminhavam em fila pelas ruas, cantando em coro e carregando na cabeça pedras, tijolos, argamassa, tábuas para construir a sua igreja. Compadecido, até o então governador Manoel Bernardo de Melo e Castro, capitão general do Estado do Grão Pará, Maranhão e Rio Negro, contribuiu com 50 mil réis mensais para as obras. Landi desenhou a igreja, doou dinheiro para a compra de material de construção e ajudou a levantá-la.
No dia 15 de junho do ano passado a igreja do Rosário, vinculada à Paróquia da Santíssima Trindade e à Arquidiocese de Belém, protocolou sob o n° 2939/2021, na Semma – Secretaria Municipal de Meio-Ambiente de Belém, documento pedindo a poda das árvores, bem como a retirada das ervas daninhas e o controle de pombos que ameaçam a linda igreja, tombada pelo Iphan – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e marco de fé e esperança, porém até hoje nenhuma providência foi tomada. Moradores, trabalhadores e comerciantes das redondezas, fiéis que frequentam a igreja e todos os cidadãos que amam Belém e defendem o patrimônio histórico, artístico e cultural, além do clero, estão aflitos ante a iminência de um sinistro, por falta de medidas da Prefeitura de Belém e da Equatorial Energia, à qual cabe cuidar da fiação elétrica nas vias públicas.
A igreja é também cenário da Cabanagem, que eclodiu em 1835. Os restos mortais de um dos líderes da revolução popular, Antônio Vinagre, morto em combate, foram originalmente lá sepultados.
A história da edificação é tão bela e emocionante quanto o templo em si. Em 1.682 havia ali uma ermida dedicada à milagrosa Virgem da devoção dos negros escravizados, demolida em 1725 e reconstruída nesse mesmo ano, com idênticas dimensões e no mesmo lugar.
Era comandada pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Os componentes da “mesa da irmandade” tinham denominações de rei, rainha, príncipe, juiz, mordomo, escrivão, tesoureiro, procurador e zelador. Em caso de impedimento de um ou de outro, eram substituídos por ordem hierárquica “a fim de que não houvesse injustiça”, assinalam os registros do Iphan. Na véspera e no dia da festividade de Nossa Senhora do Rosário, o rei e a rainha assistiam às solenidades religiosas em lugares especiais. Ao entrarem no templo, os soberanos, acompanhados de todos os membros da irmandade, seguiam sem coroa. Regressavam coroados e assim percorriam a cidade, angariando esmolas para a festividade. Era um acontecimento que levava o povo às ruas. Ninguém deixava de contribuir. O rei e a rainha doavam 10 mil réis, cada um, não podendo o dinheiro ser retirado da coleta.
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