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Era segunda-feira, 19 de junho de 2023, o Brasil acordou e foi trabalhar. Levantou cedo da cama, jogou água no rosto, molhou o bico do pão de ontem no café com leite, olhou para o futuro e nada viu, bateu a porta de casa e saiu. Enfrentou fila, perdeu tempo, envelheceu. Saculejou nos ônibus, espremeu-se nos trens, sentiu o dia esquentar enquanto a marmita esfriava, mas teve coragem e foi trabalhar. Era segunda-feira, 19 de junho, o Brasil de verdade acordou e foi trabalhar.

Não deveria ter ido. No Brasil de verdade, 19 de junho, caia no dia da semana em que cair, dia de feira, dia de sábado ou de domingo, deveria ser feriado nacional. Num 19 de junho, também segunda-feira, em 1944, nasceu Francisco Buarque de Hollanda, e na última segunda-feira Francisco Buarque de Hollanda completou 79 anos de idade. Não li muito a respeito nos jornais, não ouvi pelas esquinas as salvas de palmas que gostaria de ter ouvido, não vi matérias nos telejornais.  

Nas telas em geral, da televisão ou dos telefones, estavam as mesmas figuras nefastas e abjetas da véspera, essa gente engomada, bem vestida, viajada, enfatuada, poderosa e ruim que, de mãos dadas apenas consigo mesmo, leva todo dia o Brasil para passear à beira do abismo. Não estava Francisco Buarque de Hollanda, muito embora devesse estar, muito embora devesse ser feriado.

O Brasil retribui com silêncio e descaso o que deveria retribuir com gratidão, orgulho e festa, muita festa.

Felizmente encontrei dois textos à altura do aniversariante, duas manifestações legítimas de carinho, dois testemunhos importantes a reconhecer a grandeza do homenageado e do que ele fez pelo país, por sua língua, sua gente, sua literatura, sua poesia e sua música. Não foram muitas, mas foram duas que valeram por muitas.

Caetano Veloso escreveu: “O Brasil é capaz de produzir um Chico Buarque: todas as nossas fantasias de autodesqualificação se anulam. Seu talento, seu rigor, sua elegância, sua discrição são tesouro nosso. Amo-o como amo a cor das águas de Fernando de Noronha, o canto do sotaque gaúcho, os cabelos crespos, a língua portuguesa, as movimentações do mundo em busca de saúde social. Amo-o como amo o mundo, o nosso mundo real e único, com a complicada verdade das pessoas. Tudo está na dicção límpida de Chico. Quando o mundo se apaixonar totalmente pelo que ele faz, terá finalmente visto o Brasil.”

Poucos dias antes, não exatamente por conta do natalício, e sim em razão de um concerto que assistiu em Lisboa, o genial escritor português Valter Hugo Mãe havia descrito assim a experiência: “A passagem de Chico Buarque é da ordem da aparição. Chico aparece, como acontece com as figuras imaginárias, as dos sonhos e da fé. Os concertos marcados para Portugal, tão do foro do normal quanto possível, são ainda assim modos de prometer o pequeno milagre de encontrar um homem que se transcendeu em vida, significando génio e ternura, inteligência e bravura para a vasta maioria da humanidade. Eu diria, para a vasta multidão de decentes (…)”

“O Chico Buarque, quis eu explicar, não é um estrangeiro em Portugal. Ele é uma figura tutelar. Um génio que nos visita sobretudo por dentro de nossa pele, por dentro de nossas saudades, nosso amor, nossa identidade. Ele é por dentro dos portugueses (…) Tenho a impressão de que fomos ver Chico Buarque e Mônica Salmaso como quem foi ao culto. Eu passei depois a noite em claro. Escrevi isso nas minhas redes sociais. Não podia dormir. Queria andar ao sol para sentir a luz, esse óculo do mundo sobre mim para acreditar um pouco que, no meio da agrura que tem sido a vida, me sobra alma. Como se a alma fosse de perder e recuperar. Como se um culto assim nos ajudasse a suprir a sensação de vazio no corpo.”

Caetano e Valter Hugo nos redimiram um pouco, expiaram a imensa culpa que carregamos por não exigir que 19 de junho seja feriado, por não termos ido até o Leblon em passeata, entoando as canções que Chico fez para nós, para desejar-lhe saúde e muitos anos de vida, para fazer votos de que ganhe o Nobel. Caetano e Valter Hugo, cada qual de um lado do Atlântico, uniram suas qualificadas vozes para atestar que a pátria de Chico, tal como a de Fernando Pessoa, é a língua portuguesa; que dela ele é um artista inigualável, um operário do seu lirismo, das suas rimas, versos e conjugações. Caetano e Valter Hugo, enfim, disseram o que precisava ser dito, escreveram o que era imprescindível estar escrito.

Enquanto isso, num Brasil que certamente não é o melhor, gente esclarecida prefere bater no peito e dizer que Chico é isso, que Chico é aquilo, que Chico é da esquerda caviar, que vota em fulano, defende beltrano, vive passeando com siclano em Paris, como se isso fosse pecado, heresia ou bruxaria. Torquemadas de plantão, queimam-no sem clemência na grande fogueira desvairada da inquisição nacional, essa chama de intolerância e desamor que teima em não arrefecer.

Não quero saber em quem Chico vota, quem ele defende ou com quem passeia em Paris. Não voto como ele vota, não defendo quem ele defende e nem gosto de passear em Paris. Voto em quem eu quiser votar, defendo quem eu quiser defender e escolho quem passeia comigo, de preferência no Mosqueiro ou em Lisboa, dois dos melhores lugares do mundo. O que me importa é ouvir o que ele canta, ler o que ele escreve e apreciar o poder que tem de ver o mundo de um modo muito particular.

Chico pensa na saudade e vê o revés de um parto, a mãe arrumando o quarto do filho que já morreu. Pensa no fim de uma relação e vê, dentro do armário, a resistência do paletó a enlaçar o vestido. Vê escafandristas que virão para explorar sua casa, sua alma, desvãos. Sabe que precisa não dormir até se consumar o tempo da delicadeza. Chico conhece o que brota à flor da pele e sobe às faces a fazer corar, o que salta aos olhos a atraiçoar, aperta o peito e faz confessar, não tem mais jeito de dissimular, e nem é direito ninguém recusar, o que faz mendigo, faz suplicar, não tem medida nem nunca terá, não tem remédio nem nunca terá, o que não tem receita.

Temos muito a aprender com Chico. Que ele chegue aos 80 e siga adiante. Sua falta, quando chegar, vai nos ficar gravada na pele, feito tatuagem, e certamente vai pesar feito cruz nas nossas costas.

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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