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Há quanto tempo você não escreve à mão um texto com mais de quinze linhas, por exemplo? A escrita à mão está desaparecendo. Minha amiga me conta que as crianças ao aprender o alfabeto, em algumas escolas, o formato da letra já obedece ao que chamamos de “lettering”, que são as letras que constam nos teclados que usamos. O “a”, por exemplo, nào é mais aquela bolinha com a perna que aprendi no colégio. É a tecnologia avançando sobre algo bem profundo e revelador de nossas personalidades? Eu fiz caligrafia nos primeiros anos de estudos. Hoje, releio cadernos antigos e observo a transformação de meus caracteres, à medida em que cresci e amadureci, tempo também em que adotei uma assinatura definitiva. Há especialistas que traduzem a personalidade das pessoas apenas através de sua escrita à mão. É algo que aos poucos vai acontecendo. A minha, por exemplo, foi diminuindo de tamanho, quem sabe, influenciada por um massivo uso dos teclados. Foi se arredondando, ganhando linhas, liames e acho que até é bem bonita, como conjunto. Mas difícil de outros entenderem. Bem, nem eu, às vezes, entendo. Muitos dizem que, com a idade, a letra piora, mas prefiro acreditar no que há de mais profundo nessas pessoas, expressadas em letras. Conheço amigos que, canhotos, em função da falta de carteiras adequadas ou, para se adequar aos demais colegas, destros, enquanto uns escrevem com o corpo posicionado de maneira torta, ou então, sendo canhotos mas escrevendo com a mão direita, sua caligrafia seja horrível. O que será das próximas gerações sem a escrita à mão? Especialistas dizem que ao fazermos isso, ativamos mais partes do cérebro do que quando digitamos. As idéias fluem com mais facilidade e rapidez, e expressamos nossos sentimentos e emoções mais livremente. Deve ser verdade, mas quanto a mim, por teclar bem rapidamente, ao escrever à mão perco a paciência pela baixa velocidade que não acompanha meu pensamento. Eles, especialistas, dizem também que escrever à mão é uma expressão de nossa humanidade. Concordo. Atores que conheço, memorizam seus textos copiando à mão, exaustivamente, ativando pensamentos, fixando palavras. Desde que os humanos passaram a se comunicar através da escrita, vimos nos desenvolvendo, deixando apenas para comunidades primitivas, a linguagem oral de transmissão de conhecimento e mesmo estas já usam até computadores.

E os calígrafos, o que será deles? Até hoje é uma profissão que trabalha, na maioria das vezes, em convites ou diplomas. Mas isso também já esta à venda nas famílias de fontes, em computadores. E a assinatura? Há algo mais pessoal e intransferível? No Brasil, com toda nossa burocracia? Já usamos a impressão digital e até a íris, mas penso que chegaremos ao DNA. A tecnologia vai se impondo mas ao mesmo tempo, padronizando tudo, de maneira a facilitar a ação dos algoritmos que armazenam nossas vidas e tratam de gerenciar nossas preferências, formando uma sociedade previsível e chata. Às vezes invento um texto e vou escrevendo à mão, somente pela delícia, como se dizia antigamente, ao sabor da pena, ou sabor da escrita. Confesso que sinto dores nos dedos por falta de prática. Ao final, vejo o resultado, que acho bonito em seu conjunto, mas sei que poucos entenderão, por conta de minha caligrafia. E você? Que tal recuperar a alegria de escrever à mão, antes que não exista mais?

Edyr Augusto Proença
Paraense, escritor, começou a escrever aos 16 anos. Escreveu livros de poesia, teatro, crônicas, contos e romances, estes últimos, lançados nacionalmente pela Editora Boitempo e na França, pela Editions Asphalte.

Workshop, Feira de HQ, Beco dos Artistas e lançamentos na FCP

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