Era final da década de 80 em um mundo sem aplicativos e redes sociais. Tudo se conhecia por meio do rádio, jornal ou televisão. Em um dos primeiros concertos que fiz com uma produção mais elaborada, não custou toda a cidade de Belém ficar sabendo do concerto de violão no Theatro da Paz, que um jovem violonista iria fazer. O nome do concerto era “O Castelo de Vidro”, nome de uma das músicas autorais do repertório. Fui tomado pela sensação de responsabilidade a cada dia e quanto mais se aproximava a data mais nervoso eu ficava. Mas, filho obediente que sempre fui, recorri à boa “maracugina”, remédio calmante natural, onde ainda eram acrescentadas nove gotas de extrato hepático e uma folha de louro. Esse acréscimo ja era um “plus” que a Dona Esmeralda, uma vizinha e amiga da minha mãe, criara.
Eu sempre perguntei a minha amada mãe porque não eram dez gotas ou oito, pois eu sempre tive superstição com números ímpares e ela com sua voz de maga, voz de deusa da sabedoria natural amazonico-libanesa, me repondia: Porque não!
O concerto transcorreu de forma tranquila e plena de sucesso, tanto que fui procurado por um grupo de japoneses que foi assistir o concerto fazendo-me o convite para participar dos festejos do aniversário da imigração japonesa no Brasil.
Fiquei super feliz e honrado. Os ensaios foram marcados e em dez dias ja estava, eu e doze musicistas japonesas, vindas diretamente de Tokio para a realização de um concerto em Belém. Fiquei tão influenciado e feliz que já sentia até meus olhos repuxados no canto e uma vontade incrível de só me alimentar de sushi. Naquela época haviam uns dois ou três restaurantes japoneses na cidade, ao contrário dos dias atuais; hoje come-se mais sashimi e sushi em Belém do que em Tokio.
E assim os ensaios começaram numa das casas dos responsáveis pelo evento. Era uma casa em um local afastado do centro e cercada de vegetação. Parecia um sítio. Só que, ao invés de galinhas e porcos, tinha peixe. Eram tantas carpas que eu tinha medo de encontrar carpa até na grama correndo.
As músicas foram entregues em partiruras. Doze músicas compunham o repertório. Acostumado desde cedo a uma boa leitura musical, logo observei que era uma idêntica a outra. Pra mim, ocidental do bairro do Reduto, não havia diferença entre uma música e outra, mas me dediquei ao evento. Eu era o único violonista no meio de treze Kotos. O Koto é um instrumento musical de cordas dedilhadas, composto de uma caixa de ressonância com diversas cordas, semelhante a uma grande cítara, possui cerca de 1,80m. Atualmente é o mais popular dentre os instrumentos musicais tradicionais japoneses.
Uma senhora japonesa era responsável por me buscar em minha residência e me conduzir ao ensaio. O curioso é que ela falava com o forte sotaque japonês trocando “l” por “r” e sem pronunciar palavras com “ão”. Dá pra imaginar como ela me chamava. A senhora dizia que passaria em casa as 7:40h. No dia seguinte pontualmente as 7:40h ela estava na porta da minha casa. No outro ensaio dizia as 7:36h, e com pontualidade espetacular, la estava ela. No terceiro ensaio disse que chegaria as 7:43h, eu pensei que ela estava fazendo algum ritual já comigo. O ensaio começava pontualmente as 8h. Eu pensei; “égua tem alguma coisa estranha”. Com muita delicadeza eu peguntei a ela o motivo dos horários serem tão precisamente diferentes nos detalhes dos minutos e ela me disse com um sorriso terno e amedrontador, olhando no bago do meu olho, que dependendo do dia e do trânsito, sabia quantos minutos gastava no trajeto da minha casa até o local. Eu fiquei sem ação mas achei lindo aquilo; não imaginava o desenrolar dos fatos.
Toda vez que ensaiávamos, as tonalidades mudavam. No ensaio não se falava português. Só japonês. Eu ficava rindo e concordando com tudo sem saber o que falavam apenas para ser gentil. Aprendi a transpor harmonias mas, às vezes, ficava dificil. No quarto ensaio eu tomei a decisão de no meio da música em mais uma mudanca de tonalidade, levantar a mão e perguntar qual era afinal o tom da música.
Neste momento a maestrina, uma senhorinha bastante idosa com um semblante de poucos amigos, que não falava uma virgula de português, me olhou como uma águia olha para um coelho. E falou palavras em japonês num tom nada amigável. Nesse momento uma das assistentes, também japonesa, veio correndo e me disse que nunca se deve interromper uma maestrina e que no “Japon” isso era muito grave. O ensaio parou e eu fiquei com aquela cara de quem está no elevador com gente estranha.
Eu já estava muito chateado e o dia do concerto se aproximava. O clima era de tensão total. Para piorar, as paredes do local eram cheias de espadas de samurais. Aí que eu ficava cabreiro.
Chegou o dia do evento no teatro lotado de japoneses e descendentes. Eu, na coxia para entrar, chega um japonês e me fala com uma voz ora grossa e ora fina ao mesmo tempo:
- Tira sapato! Tapete sagrado japon!!!
Ele queria que eu tirasse o sapato para entrar no palco. Fiquei desesperado porque além da minha meia estar furada no dedão eu tava de terno e achei que ficaria ridículo aquilo. Me chamaram e entrei de sapato mesmo. Toquei e acabou o martírio. Voltei pra casa. Pra mim foi traumático.
Passaram mais de vinte anos e num evento de cultura de paises diferentes, minha apresentação antecedeu um grupo de música japonesa. Já haviam passados vinte e poucos anos daquela fatídica experiência. Veio até mim, uma das integrantes, toda caracterizada com indumentárias típicas do Japão me perguntou:
- Senhor Saromon toca bem guitara né? Tem experiência música Japón? Querer convidar senhor para tocar com grupo lá no país Japón.
Eu gelei e fiquei felicíssimo.
Mas ela insistia em perguntar se eu tinha experiência com música japonesa. Eu falei a ela que sim mas que minha experiência não tinha sido das melhores pois a maestrina da época não falava português e era muito agressiva e intolerante. Ela lamentou e imediatamente perguntou qual era o nome dessa maestrina e eu falei o nome.
Um silencio se formou e vi os olhos até então ternos, se tranformarem em olhos de águia e falou pra mim:
- Era eu!
Nunca imaginava tratar-se da mesma maestrina. Ela deu as costas e saiu com aqueles psssos miúdos. Nunca mais ouvi falar da maestrina.
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