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A
violência é abominável, sob todas as formas. E a repercussão internacional
alcançada pela matança de cachorros em Santa Cruz do Arari, que ensejou atos
públicos, corrente solidária com arrecadação de ração e até a presença de
atores globais na praça da República em Belém, inevitavelmente remete à situação
da gente marajoara, onde meninas às vezes ainda impúberes se prostituem em
troca de um quilo de carne, um litro de óleo diesel ou R$1, e são levadas a
isso pelas próprias
famílias.
A exploração de crianças é uma vergonha, uma ferida
profunda no Estado do Pará. No Marajó, extremamente pobre e esquecido, não há
qualquer controle. Os rios são rotas para o tráfico de madeiras, de drogas e de
pessoas, é um território de ninguém, situação perpetuada pelo descaso,
conivência e corrupção. Meninas ficam à beira dos rios esperando barcos que
passam, não importa a hora do dia, para vender seus corpos em troca de comida, o
que rendeu a elas o apelido de “balseirinhas”, o que parece ser aceito pela
sociedade, que não mexe um músculo para dar um basta a essa desgraça. As
famílias miseráveis se desintegram moralmente. O estado de necessidade de
dinheiro faz com que as pessoas encarem qualquer coisa, achem natural e até bom
o narcotráfico, porque os traficantes dão comida e remédios.
A beleza do arquipélago do Marajó rivaliza com a
miséria da região, cortada por imensos rios. Integrado por mais de 3 mil ilhas
e ilhotas praticamente inacessíveis, o abandono pelo poder público é secular.
Seus 16 municípios abrigam cerca de meio milhão de seres humanos. A maioria
convive com a fome. A economia depende do corte de madeira, do trabalho em
fazendas de criação de gado ou da coleta de frutos e sementes nativas.
Dom José Luiz Azcona Hermoso, bispo do Marajó, há
muitos anos clama por justiça e proteção a essas crianças e adolescentes. “E não é só aqui no Marajó. O mesmo está
acontecendo em várias outras cidades. Em Santarém, Bragança, Abaetetuba,
Cametá, Belém, Marajó, Altamira, Xingu… No Pará, esta problemática está se
expandindo cada vez mais. Isso é um fato que se agrava
”, indigna-se o
religioso, que denuncia também a devastação ambiental, a pesca predatória de
arrastão na desembocadura do Amazonas, o descarte criminoso de peixes que deixam
de alimentar a população pobre.
O abuso sexual intrafamiliar e interpessoal
(incesto, pedofilia, estupro, pornografia) e a exploração sexual comercial e
não comercial (prostituição/prostituição infantil, turismo sexual, pornografia
e pedofilia, tráfico para fins sexuais) impedem que as crianças e adolescentes
pobres, presentes no contexto histórico como alvo de discriminação e
maus-tratos, tenham acesso a uma vida digna. 
Assim
como os cãezinhos de Santa Cruz do Arari, o caboclo marajoara também tem sido
manietado, amordaçado, mantido doente, com fome e com sede de cidadania, desde
a mais tenra idade.

Toneladas de ração foram arrecadadas para alimentar os cachorros de Santa Cruz do Arari. Mas os doadores não atentaram para o fato de que se trata de cães
vira-lata, que não comem ração. Ou seja: dinheiro jogado fora, energia que
poderia ser utilizada de modo eficiente e eficaz foi desperdiçada.

Será que as
crianças e as adolescentes, os adultos e velhinhos marajoaras não merecem o
carinho, a solidariedade, o ardor e a indignação a mover a sociedade exigindo que
sejam tratados devidamente como gente? Ou terão que virar literalmente animais
para ganhar atenção?
Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, membro da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Paraense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, editora geral do portal Uruá-Tapera e consultora da Alepa. Filiada ao Sinjor Pará, à Fenaj e à Fij.

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