Nesta quarta-feira (26), é celebrado o centenário de nascimento e o legado monumental de um dos maiores pensadores, educadores e políticos brasileiros: Darcy Ribeiro, cidadão do mundo nascido em Montes Claros (MG) que se foi em 17 de fevereiro de 1997, vítima de câncer. Era um gigante: antropólogo, historiador, sociólogo, romancista, etnólogo, indigenista, professor, político. Idealizador e primeiro reitor da Universidade de Brasília (UnB), membro da Academia Brasileira de Letras, ministro da Educação do governo parlamentarista que sucedeu a Jânio Quadros, chefe da Casa Civil no governo João Goulart, secretário de Estado da Cultura e coordenador do Programa Especial de Educação do Rio de Janeiro (na gestão Leonel Brizola) e senador da República, dedicou sua vida à luta em prol dos direitos humanos e por uma educação de qualidade no Brasil.
Darcy Ribeiro foi responsável também pela fundação da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), bem como pela criação dos Centros Integrados de Educação Pública, os Cieps. Foram implementados 500 deles durante o governo Brizola, com projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer. Dali, nenhuma criança sairia sem “ler, escrever e contar”. Contribuiu para a organização da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (Lei nº 9394/96) e para o art. 8º da Lei Estadual nº 5.361/2008, que versa sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no Rio de Janeiro. Sua atuação foi decisiva para a causa indígena: trabalhou no serviço de proteção ao índio (atual Funai), concebeu o Museu do Índio, do qual foi diretor; e o Parque Indígena do Xingu, junto com os igualmente lendários irmãos Villas-Bôas. Para a Unesco, formulou estudo do impacto da civilização sobre os grupos indígenas brasileiros no século XX, colaborou com a Organização Internacional do Trabalho na geração de um tratado sobre os povos nativos de todo o mundo, planejou e conduziu o primeiro curso de pós-graduação em Antropologia no Brasil.
Figura essencial na defesa e consolidação do Estado Democrático de Direito no Brasil e na luta contra a ditadura militar, Darcy Ribeiro foi reconhecido com títulos de Doutor Honoris Causa pelas Universidades de Sorbonne, Copenhague, Uruguai, Venezuela e UnB. Seu pensamento segue vivo e inspirando reflexões.
“Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”. Este trecho do discurso que Darcy Ribeiro proferiu na Sorbonne, em Paris, quando recebeu o título de Doutor Honoris Causa, resume a singular e brilhante carreira do intelectual que nunca se limitou aos círculos acadêmicos. Os Cieps não mais existem, viraram escombros. Segundo Darcy, resultado da perversão do Brasil: “Nosso país é enfermo de desigualdade, de brutalidade, de perversidade. Escravocrata”.
Criou a Biblioteca Pública Estadual, a Casa França-Brasil, a Casa Laura Alvim. Contribuiu para o tombamento de 98 quilômetros de belíssimas praias e encostas, além de mais de mil casas do Rio antigo. Convidou Oscar Niemeyer para projetar o sambódromo da Marquês de Sapucaí, estrutura sob a qual foram instaladas 200 salas de aula, hoje desativadas. Por seu trabalho no MEC foi convidado a participar de reformas universitárias no Chile (sob Salvador Allende), Peru (de Velasco Alvarado), Venezuela, México e Uruguai, depois de deixar o Brasil, cassado e expulso pela ditadura militar de 1964. Escreveu nesse período os cinco primeiros volumes dos Estudos de Antropologia da Civilização (O processo civilizatório, As Américas e a civilização, O dilema da América Latina, Os brasileiros: Teoria do Brasil e Os índios e a civilização), livros que atingiram mais de 90 edições em diversas traduções. A essa coleção viria se somar (e encerrar o sexteto) O Povo Brasileiro, publicado em 1995 e desde sempre fonte de consulta obrigatória sobre a identidade nacional.
Criou o Memorial da América Latina, centro cultural, político e de lazer, inaugurado em 1989, em São Paulo. Junto com Paulo Freire e Anísio Teixeira, sonhou uma escola universal, integral, democrática, acolhedora e libertária, de onde sairiam cidadãos letrados, críticos e bem alimentados de corpo e alma. Era mesmo um sonhador: emprego para todos, comida na mesa e criança na escola, em tempo integral, com horários para reforço, educação física, iniciação esportiva, projetos culturais, aulas de música, artes plásticas e teatro, incluídas todas as refeições do período (café da manhã, lanche da manhã, almoço, lanche da tarde e jantar). Almejava tornar escolas a principal referência arquitetônica e comunitária em seus bairros e cidades.
“Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios”, previa Darcy, com acerto, aduzindo que “a escola pública é desonesta, feita para os 20% de classe média e que abandona os 80% de pobres. Nesse modelo, são despejados das escolas milhares de semiletrados, analfabetos funcionais e gente despreparada para o mercado de trabalho e para a própria cidadania. Não faltam exames, testes e avaliações nacionais e internacionais que comprovam que esse descaso governamental é o responsável pelo fracasso como nação”.
Essa inquietude cidadã levou Darcy a concluir que o Brasil é vocacionado a ser “uma nova Roma, lavada em sangue índio, lavada em sangue negro”, convicto de que em meio à imensa diversidade resiste uma unidade nacional cultural, fundada justamente na mistura de raças e origens.
Comentários