0

Quando o nosso Pindorama foi invadido, os colonizadores não contaram conversa em usar a religião católica como arma de dominação das populações originárias, das sequestradas, das escravizadas, e das que foram surgindo como consequência de todas as anteriores. Mas foi num Dia de Reis, data em que o catolicismo comemora a visita dos reis magos do oriente ao menino Jesus, conduzidos pela Estrela até Belém -que é uma polêmica no mundo arqueológico se é a da Galileia ou a da Judéia – em seu presépio, que explodiu nesta Belém de cá (capital da província do Grão Pará, na época, que corresponde basicamente ao que é hoje a Região Norte do Brasil), que foi tomada pelos revolucionários em 1835, a Cabanagem, um movimento popular insurrecional formado maioritariamente pela população indígena, escravizada, mestiça e trabalhadores pobres, que proclamou a independência do Governo Brasileiro, que por sua vez já independente de Portugal.

Não tenho reservas em dizer que a Cabanagem foi o mais importante movimento popular brasileiro, embasada por tantos historiadores e acadêmicos que entendem do assunto infinitamente melhor do que eu, e que a quase completa ignorância deste período tão importante pela população das outras regiões brasileiras, que poderia ter feito da Amazônia um outro país e talvez escrito uma história tão menos corrupta e com desigualdades bem menores, é ao meu ver a prova irrefutável de que o colonialismo interno disputa mano a mano com o europeu a culpa da exploração e subjugação da Amazônia. Muitas famílias celebram o Dia de Reis, porém não relembram a importância da revolução cabana na nossa história regional e nacional e do quão necessário é que a tomemos como inspiração de união social ainda nos dias atuais.

Quando decidi dedicar a minha pesquisa de doutoramento à representação feminina decolonial na Amazônia, deparei-me com a tese da Professora Dra. Eliana Ferreira, publicada em 2010 e, no meu conhecimento, o documento mais completo que resgata o papel feminino no direito à terra pós-Cabanagem e, consequentemente, no próprio período cabano, ao apresentar provas de que as mulheres foram protagonistas também da revolução, inclusive dos conflitos armados. Não é novidade o nosso silenciamento histórico, desde que as icamiabas viraram feiticeiras perversas pelas representações de europeus que não mediram esforços para replicar do lado daqui do oceano o patriarcado que (ainda) é alicerce da dominação do povo, mas muito me assusta quem em 2023 ainda relativamente pouco produzamos e propaguemos conhecimento sobre a participação feminina na revolta cabana.

Palestra "Mulheres Cabanas: Memórias e Contemporaneidades", pela Professora Dra. Eliana Ramos e com a ouvidora-geral do município de Belém Márcia Kambeba

Começamos o ano com um discurso no qual o presidente da república prometeu governar igualitariamente para todo o país, depois de quatro anos obscurantistas já iniciados com o anúncio feito pelo inominável (agora foragido) de que “as minorias iriam se curvar para a maioria” – quando sabemos que, na verdade, esta dita “maioria” odiosa é que é a minoria em nosso país. Como amazônidas, comemoramos a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a primeira presidência indígena da FUNAI, lideradas por duas mulheres indígenas da Amazônia, a deputada federal eleita maranhense Sônia Guajajara e a primeira mulher indígena advogada e deputada federal do Brasil, a roraimense Joenia Wapichana, respeitadas internacionalmente pela relevância de seus ativismos; comemoramos a volta de uma mulher cabocla, também amazônida, Marina Silva, como Ministra do Meio Ambiente; comemoramos a criação da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, que será presidida pela jornalista travesti cametaense Symmy Larrat, uma mulher trans amazônida pioneira que já foi coordenadora-geral de Promoção dos Direitos LGBT do governo Dilma Roussef e coordenadora do programa Transcidadania quando Fernando Haddad era prefeito de São Paulo. Foi impossível conter as lágrimas com a presença do Cacique kayapó Raoni Metuktire no grupo que representou o povo brasileiro na entrega da faixa presidencial, subindo de mãos dadas com Lula a rampa do Palácio do Planalto.

Mesmo com essas mudanças significativas e muito apreciadas, ainda não estamos perto de ocupar lideranças nacionais proporcionalmente à nossa população e à nossa contribuição para o país. Como atleta – ainda que amadora – me enchi de esperança com a nomeação de Ana Moser, por ter a convicção de que a inclusão do esporte é essencial para a melhoria da qualidade de vida da população de todas as idades, e aguardo ansiosa o anúncio de políticas públicas voltadas para as populações da região Norte, principalmente para as mulheres, que mesmo nas ligas de elite internacionais ainda são negligenciadas e menos remuneradas que seus pares masculinos. Como cantora profissional, cineasta, professora e pesquisadora em ciência e tecnologia das artes, vibrei com a nomeação de Margareth Menezes, uma das grandes divas brasileiras, na minha opinião, para o Ministério da Cultura, mas não consigo entender como ainda não foi anunciado nenhum nome da Amazônia quando a importância e originalidade de nossas artes são o berço do Brasil e temos nomes tão significativos como Zélia Amador de Deus, para citar só uma pessoa, entre muitas.

Precisamos revisitar a Cabanagem com um olhar mais aguçado e numa dimensão mais profunda para entendermos que nós, mulheres da Amazônia, sempre ocupamos um lugar fundamental na sociedade e suas lutas e que não podemos descansar enquanto não ampliarmos e amplificarmos o nosso protagonismo nas lideranças públicas, pois só assim conseguiremos justiça social e equidade para todas nós nos ambientes urbanos, rurais, florestais e litorais. Neste aniversário de 188 da nossa grande revolução popular precisamos vestir o chapéu de cabanas pós-modernas: mas ao invés de carregarmos armas mortais, usarmos a união de nossas forças para promover o acesso universal ao básico que ainda é utópico: vidas dignas.

Imagem que restringe erroneamente o papel feminino na Cabanagem. Fonte: ilustra cabanagem – Arquivo Aventuras
Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

Pós-Dezembro

Anterior

Jornalista denuncia injúria racial em condomínio

Próximo

Você pode gostar

Comentários