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Há quinze anos a população marajoara de Cachoeira do Arari vem pedindo socorro às autoridades, denunciando o desvio de cursos d´água, comprometimento do nível e da biodiversidade do rio Arari e seus afluentes, envenenamento do ar, do solo e da água pelo uso intensivo de agrotóxico borrifado de aviões, fuga de animais peçonhentos para as residências, seca do rio, lagos e igarapés e adoecimento das pessoas pelo arrozal de Paulo César Quartiero, nos 13 mil hectares que ele grilou e degradou. Ministério Público Federal, Ministério Público do Estado, Defensoria Pública, Incra, Instituto Dom José Azcona, Movimento Marajó Vivo, Instituto Âncora Marajó, Instituto Peabiru e Comissão de Direitos Humanos da Alepa, entre outros, abraçaram esta causa humanitária. Na quinta-feira passada, 28, finalmente, a Fazenda Acostumado foi interditada e aplicada multa superior a R$1milhão, em operação envolvendo a Delegacia Especializada em Meio Ambiente, a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Estado e a do Município de Cachoeira do Arari, além de peritos do Instituto Renato Chaves.

A impunidade, como sempre, estimula e encoraja a reincidência. Ao prestar depoimento sobre os gravíssimos crimes ambientais cometidos em Cachoeira do Arari, Quartiero, com a costumeira arrogância e desprezo às leis, mobilizou seus pares do agro para pressionar o governador Helder Barbalho. E para espanto de todos os cidadãos parauaras que compram honestamente suas terras, pagam impostos, cumprem as leis e almejam alcançar os objetivos do milênio, o secretário de Estado de Agricultura, Pecuária e Pesca, Giovanni Queiroz, em áudio que circula em grupos de WhatsApp e ao qual o Portal Uruá-Tapera teve acesso, afirma: “deputado Quartiero, quero aqui me solidarizar com você, enquanto produtor rural, indignado que estou, o prejuízo é para todo o setor produtivo no estado do Pará. Ações irresponsáveis, desequilibradas, não é, que só vêm a prejudicar o estado. Enquanto secretário de Estado de Agricultura, este fato está diretamente vinculado à nossa condição de poder produzir no estado. E você vai contar comigo, estaremos juntos, já quero na segunda-feira encontrar com você, e quero pedir uma audiência com o governador para discutir esse assunto especificamente, que logicamente se multiplica para tantos outros semelhantes. Fica aqui o meu abraço a você, a minha solidariedade, e vou estar à sua disposição para trabalharmos isso no sentido de sanar de vez essa perseguição que há muito vem sobre você. Um grande abraço.”

Giovanni Queiroz rende homenagens a um grileiro, desmatador e destruidor de vidas, ataca seu próprio colega secretário de Estado titular da Semas Pará, Mauro Ó de Almeida, e ostenta suposta ascendência sobre o governador Helder Barbalho, além de revelar que existem muitos outros casos iguais em todo o Pará. O governador do Pará, que preside o Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia Legal, vem se destacando como palestrante em eventos internacionais em defesa do meio-ambiente, dos direitos humanos e de cidadania, e tem empenhado sua palavra de honra junto ao presidente Lula e organismos internacionais da ONU quanto ao compromisso de cuidar das pessoas e do planeta, terá que tomar providências.

No momento da lavratura das infrações na delegacia de Cachoeira do Arari, Paulo César Quartiero recusou assinar os autos e, ao ser informado pelo agente Elves Marcelo Barreto Pereira que, independentemente da sua recusa, seriam executadas as notificações e multas, de imediato se retirou da sala, porém logo em seguida retornou e proferiu violentas palavras de baixo calão, aos gritos: “Vai tomar no c…, vai tomar no c.…Se bem que acho que tu gosta disso” (sic) e foi embora proferindo ameaças a toda a equipe. Os servidores da Semas registraram B.O. e foi instaurado inquérito policial a fim de apurar os fatos e responsabilizar o arrozeiro pela conduta criminosa.

Cachoeira do Arari fica dentro da Área de Preservação Ambiental (APA) do Marajó, Unidade de Conservação de Uso Sustentável criada em 1989 pela Constituição Estadual, até hoje não regulamentada e sem instrumentos básicos de funcionamento como o Conselho Gestor e o Plano de Manejo. Quartiero planta arroz nesse santuário ecológico, que é candidato a Reserva da Biosfera, título internacional de proteção concedido pela Unesco. Apontada pelo Ministério Público como área pública grilada, o Judiciário determinou o cancelamento do título das terras, mas Quartiero continua lá.

O licenciamento original das Fazendas Reunidas Espírito Santo, em nome do filho Renato, foi aprovado entre 2007 e 2010. Pisando na legislação federal, que determina a realização de Estudo de Impacto Ambiental para áreas produtivas superiores a mil hectares, Quartiero obteve a licença em menos de três meses, sem EIA/Rima ou qualquer estudo ambiental e sequer apresentar os documentos da terra e comprovar áreas de preservação obrigatórias. A autorização foi assinada pelo então secretário de Meio Ambiente, Aníbal Picanço, que a então governadora Ana Júlia Carepa exonerou em novembro de 2010, depois que ele foi flagrado pela Polícia Federal em um esquema de … venda de licenças ambientais. Picanço, que era procurador federal concursado, foi expulso do serviço público.

Em 2013 o governo Simão Jatene construiu, pavimentou, sinalizou e doou uma rodovia para Quartiero escoar o arroz pelo rio Arari até o porto de Icoaraci. Nesta via nenhum morador pode trafegar, apenas os donos e funcionários do arrozal.

Nos anos seguintes a situação foi se agravando cada vez mais. As atividades de Quartiero causam imensos impactos sociais e ambientais, pela pulverização descontrolada de agrotóxico, desvio do rio Arari, aterramento dos lagos para irrigar o arrozal e devastação acelerada da floresta, ações que têm afetado brutalmente a vida de toda a população rural e urbana de Cachoeira do Arari e todo o ecossistema local. Jamais houve outorga para uso e desvio da água do rio, muito menos para tanques de armazenamento de combustível e para as atividades agropecuárias ilegais de Quartiero, que estão secando grande parte do leito do Arari, dificultando a navegação e a pesca artesanal, além de contaminar e devastar a floresta, entre outros absurdos.

Em 2019, o bispo emérito da Prelazia do Marajó, Dom José Luis Azcona Hermoso, logo no início do governo Helder Barbalho, alertou a ele, aos titulares da Semas, Segup, Polícia Civil e PMPA, presentes na audiência, sobre a aterrorizante situação. Dom Azcona relatou que Quartiero grilou a terra, não gera emprego e muito menos renda a não ser a si mesmo, borrifa agrotóxicos que são proibidos por lei federal e que já adoeceram toda a população de Cachoeira do Arari com câncer e doenças dermatológicas, além de os bebês nascerem com deformidades, desviou o rio para as terras que ele invadiu e cobra dos pobres pescadores que vão pescar lá pelo uso da água! Que contaminou a água, a terra e o ar, fato atestado por especialistas, professores doutores do Instituto Evandro Chagas, do Museu Goeldi, da UFPA e da UFRA, respeitadíssimos e de renome internacional.

As matrículas das Fazendas Reunidas Espírito Santo foram anuladas pelo Tribunal de Justiça do Pará, que acatou a tese do Ministério Público, confirmada pelo Incra, de que as terras, na verdade, pertencem ao governo brasileiro e foram objeto de grilagem. A anulação das matrículas enseja a devolução da área ao poder público e indenização à população de Cachoeira do Arari, irremediavelmente prejudicada. Mas nenhuma providência foi concretizada.

Não é preciso ser PhD para mensurar a tragédia ambiental e social, dado o volume de veneno despejado durante estes 15 anos sem qualquer controle, afetando os peixes em habitat de alta toxicidade, a população ribeirinha, os municípios de todo o Marajó, inclusive mercados de Belém onde se vende peixes e crustáceos com alta probabilidade de contaminação no fluxo do canal sul do Amazonas, desaguando no Oceano Atlântico, crime monstruoso de mil faces, hediondo, contra a humanidade, envenenamento em vastas áreas aquáticas e desertificação, agonia da criação e da vida inteira na Amazônia oriental, como bem explicitou Dom Azcona.

A empresa emprega uns vinte trabalhadores braçais do município e o restante da atividade é mecanizada. Para o serviço mais especializado a família Quartiero contrata profissionais de fora. Não paga impostos municipais, estaduais nem federais. “Cachoeira não leva vantagem alguma, não há nenhum benefício, só prejuízo”, assegura o prefeito.

Todas as esferas públicas têm conhecimento da situação de calamidade que Cachoeira do Arari enfrenta há uma década e meia. “Todos os dias jogam veneno na nossa cabeça, nas nossas casas, nossos quintais estão envenenados, nossos animais doentes, nossas hortaliças, frutíferas, tudo está contaminado, não é só a água do rio. Adultos e crianças sofrem com coceira no corpo, bebês nascem cegos e deformados, o peixe está desaparecendo e nem espaço para construir uma casa temos. O que falta pras autoridades enxergarem?”, se queixa um morador do bairro do Choque, que pediu para não ser identificado, por medo de retaliação.

No pequeno município, a população depende da pesca. Mas a água é bombeada na cabeceira do rio, desviada para canaletas de irrigação dos arrozais, na beira da PA-154. Dos dois lados da rodovia, a imensidão devastada, dos antes lindos campos de Cachoeira, decantados pelo escritor Dalcídio Jurandir, alarmam quem passa pelo local.

No período de chuvas, as canaletas transbordam e as águas escoam para os lagos que são os nascedouros de várias espécies de peixes, tartarugas, entre outras vidas animais e vegetais, afetadas pelo veneno do arrozal, que já sofrem mutações e muitas espécies estão desaparecendo, tais como camarão e açaí. O tamuatá, por exemplo, peixe dos mais consumidos na região, está mudando até de cor.

Os pescadores não podem mais pescar após as 18h. “Os pistoleiros mandam a gente sair da área dizendo que é propriedade privada. Muitas vezes vamos pescar em Salvaterra para poder conseguir peixe. Somos ameaçados e eles pesam o pescado que pegamos e cobram por peso. Eu cheguei a pagar R$3 por cada quilo pescado. A gente tá pedindo socorro e ninguém nos atende”, suplicam, com medo de serem identificados e mortos.

O lago do Tatu, uma das áreas mais ricas em biodiversidade, está sendo aterrado pela família Quartiero a fim de expandir o arrozal. Outros lagos já desapareceram e deram lugar à plantação de arroz.

“Eu sou extrativista, vivo de colher tucumã para fazer óleo, e outras espécies. Agora, para conseguir qualquer fruto temos que ir bem longe porque aqui tudo foi derrubado, antes da empresa se instalar na cidade a gente colhia muitos bacuris, tucumãs, murucis, fazia óleo, vendia e também comia”, diz outra pessoa marajoara amedrontada.

Dono de extensa ficha policial e processual, Quartiero foi deputado federal e vice-governador de Roraima, de onde foi expulso por ordem do STF, depois de passar mais de trinta anos devastando e envenenando a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Votou contra a PEC do Trabalho Escravo (438/2001), adivinhem o porquê? É acusado pelo Ministério Público Federal de mandar invadir a missão religiosa do Surumu, em Roraima, em janeiro de 2004, destruir bens e sequestrar três padres; e de participar de um grupo que invadiu e depredou a sede da Funai em Boa Vista (RR). É réu em ações penais por sequestro e cárcere privado e por crime contra a liberdade pessoal e formação de quadrilha. É também citado em inquéritos de crimes contra o patrimônio, crimes contra a segurança nacional, crimes contra a administração em geral, desobediência e desacato, crimes de responsabilidade, sonegação de contribuição previdenciária, crimes contra o meio ambiente e o patrimônio genético. É alvo de ação de execução fiscal movida pelo Ibama e foi responsabilizado pelo TCU por irregularidades em prestação de contas de convênio e condenado a multas e dívidas que nunca honrou.

Em novembro de 2004, o arrozeiro e outras sete pessoas, “mediante violência e grave ameaça, destruíram e incendiaram várias casas das comunidades indígenas Jauaria, Brilho do Sol, Homologação e dos retiros Insikiran e Tai-Tai”, na Raposa Serra do Sol, conforme o MPF, que também denunciou o arrozeiro por mandar abrir fogo contra indígenas Macuxi de uma aldeia próxima à área da fazenda – dez deles ficaram feridos.

Em 2008 e 2009, fiscais do Ibama compararam o que viram sobrevoando as fazendas Depósito e Providência, que juntas tinham mais de 9 mil hectares, com imagens históricas de satélites que monitoram a Amazônia. A primeira constatação foi que a área plantada excedia em quase três vezes o tamanho informado às autoridades. O arroz havia suplantado a mata que protegia as margens do rio Surumu de erosões e contaminação – por lei, essa vegetação é intocável. Além da monocultura, a beira do rio estava tomada por currais, pocilgas, armazéns e até uma pista de pouso. O cereal brotava também em locais onde antigamente existiam lagoas e rios, que estavam sumindo do mapa. “As antigas lagoas naturais inseridas na fazenda foram substituídas por culturas de arroz, onde toda e qualquer presença de vegetação lindeira foi suprimida”, escreveram os fiscais, que atestaram contaminação de solos e rios por agrotóxicos, além de queimadas nos campos. Quartiero naquela época já era reincidente nos crimes ambientais, e o resultado da fiscalização foi multa no total de R$ 56 milhões. Quase duas décadas depois, nada foi pago. E ele repetiu tudo no arquipélago do Marajó, impunemente, em três diferentes gestões estaduais do Pará. Até quando?

Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, membro da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Paraense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, editora geral do portal Uruá-Tapera e consultora da Alepa. Filiada ao Sinjor Pará, à Fenaj e à Fij.

Um romance áspero

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