Há tempos eu ansiava percorrer o Baixo Amazonas com meu filho e o sonho se realizou durante duas semanas, a partir da tarde do dia 18 de julho de 2009. Como planejado, descemos em Santarém e tratei logo de alugar um carro, pois nosso programa envolvia Alter do Chão já no dia seguinte, onde eu e Ary passamos dois prazerosos dias numa nesga de praia que a grande enchente daquele ano nos legou por pura piedade. Foi tempo mais do que suficiente. Da orla da vila, prosseguimos de catraia a travessia curta e lenta para a Ilha do Amor, debaixo de um céu azul tão profundo como há muito eu não via. Tínhamos também a opção de ir de rabeta (no Baixo-Amazonas, tem mais canoa de rabeta do que jaraqui na piracema), mas preferimos a catraia pela tranquilidade e pela conveniência de tirar algumas fotos sem pressa.
A ínfima praia tinha espaço apenas para três barracas e um monte de mesinhas à beira d’água. De propósito, escolhemos uma em que ficamos com os pés sendo acariciados pela leve maresia do Tapajós, rio de água límpida como devem ser as águas do paraíso eterno. Ficamos assim amesendados e guardados pela divina proteção das árvores amigas. Há melhor definição para aquele velho ditado de sombra e água fresca?
Sem nenhum talento para versos, nessa hora rascunhei num guardanapo de papel, umas linhas que intitulei de Inspiração Divina e que eu ainda mantenho graças aos cuidados do meu filho.
Diz o sábio livro sagrado,
E é bom que seja lembrado:
Deus, em seis dias, o mundo fez
E, no sétimo, descansou de vez.
Mas, depois da maçã e daquele ato,
Depois de achar Adão e Eva um saco,
Resolveu se livrar daquela lida,
E mirando aquele lindo rio azul,
Veio-lhe um quê de inspiração,
Para criar a bela Alter-do-Chão.
Entramos na barraca mais próxima e me apresentei para a madame que era a dona do pedaço. Era ainda muito cedo, mas seguindo um sábio ensinamento do meu velho pai, de sempre garantir a boia, tratei de assuntar com ela sobre nosso futuro almoço.
– Temos de um tudo- ela disse – caldeirada, peixe assado, cervejinha gelada, caipirosca, caipirinha …
Alter-do-Chão sempre foi uma fantasia na minha vida. Nas décadas de 1950 e 1960, quando fui estudar em Santarém, só íamos por lá em raros passeios de barco. O lugar era um “lá longe”, não havia a estrada asfaltada de agora e tínhamos outras opções mais perto, como as praias da Salvação e Maria José. O point, mesmo, era frequentar a famosa e linda Praia da Maria José, que teve seu acesso proibido (nunca entendi o porquê) desde a construção do novo aeroporto, merecidamente batizado com o nome do Maestro Isoca.
Diga-se que a estação de passageiros já está clamando por um prédio mais moderno e com maior conforto para os que ali transitam. Quando ocorre dois voos no mesmo horário, como aconteceu em nosso retorno a Belém, santa paciência, aquilo vira quase um inferno de Dante.
Ao alugar o dito carro na locadora, a gerente me disse que não havia veículo pequeno (eu queria um Palio) e acabou me cedendo um Prisma pelo mesmo valor da diária (R$ 100,00). Nada mal para quem estava economizando um bom dinheiro de hotel. Explico: ficamos dois dias hospedados no confortável apartamento do meu amigo Marcos Bravo, à época, empresário em Juruti, casado com minha amiga, quase irmã, Elienai Galúcio, também empresária e vice-presidente da Associação Comercial daquela cidade. Eles mantinham um apartamento alugado, em Santarém, para os filhos estudarem no Colégio D. Amando e o imóvel ficava vazio nos meses das férias. Tudo sorte de quem tem bons amigos na praça e não precisa dispor de tanto dinheiro em caixa.
Eu e meu filho passamos dois dias maravilhosos naquele balneário mocorongo, salvo um pequeno incidente que quase estraga o nosso segundo dia. Era domingo, em torno de nove da manhã e nos dirigíamos novamente para Alter-do-Chão, quando fomos parados por uma patrulha do trânsito, ali nas imediações do viaduto que marca o início da estrada do aeroporto. Eles estavam vistoriando todos os carros que tinham placas terminadas em 6, e o nosso, justamente o nosso, foi um dos premiados. Eu, muito desestressado, entreguei minha carteira de motorista e o documento do carro que a gerente da locadora tinha me passado. O guarda examinou tudo, devolveu minha carteira e ficou com o documento do veículo.
– Bom, sua carteira está em ordem, mas o IPVA do carro ainda não foi renovado. Vamos ter que rebocar para o curral – ele disse.
– Mas, seu guarda, pera aí, o carro não é meu, eu aluguei e estou de férias, sou turista – apelei, achando que eles podiam quebrar o galho para turistas.
– Nada posso fazer, a ordem é para rebocar – disse cheio de autoridade.
Minha paciência estava indo pro espaço e meu filho me acalmava, quando lembrei que tinha comigo o celular da gerente da locadora, “para o caso de acontecer algum problema”. Essas foram suas palavras e, naquele momento, me pareceu claro que a observação não fora dita por acaso.
– Seu guarda, posso ligar pra locadora? Preciso avisar a dona do carro.
– Tá bom, o senhor tem cinco minutos.
Disquei o número, a gentil senhora atendeu e eu contei a ocorrência, logo pedindo outro veículo, pois o dia estava convidativo e eu precisava chegar a Alter-do-Chão.
– Tenha calma – ela disse – dentro de três minutos eu chego aí e resolvo o problema.
Chamei o guarda.
– Olhe, falei com a dona do carro e ela disse que vem aqui.
Dez minutos depois, como ela não aparecia nem dava satisfação, o guarda me fez assinar um papel, nos mandou sair e trancar o carro, pois o guincho já estava a caminho. Meio desesperado, liguei novamente para a mulher. Ela atende.
– Olhe – eu disse – o guincho vem vindo, eles vão rebocar o seu carro. Onde a senhora está?
Sem demonstrar nenhum nervosismo, ela me acalmou.
– Fique frio, eu já passei aí e tudo está sendo resolvido.
– Mas, vão rebocar o carro…
-Não vão não, deixe comigo e não fale nada pro guardinha – disse assim, no diminuitivo.
Carro trancado, eu já vendo longe as águas bentas de Alter-do-Chão, quando o “guardinha” foi chamado por um outro policial de patente mais alta. Foi e voltou correndo em nossa direção.
– Chefe (já me chamando de chefe), pode ir que o carro está liberado – e tratou de rasgar o papel que eu tinha assinado.
Eu me fiz de surpreso.
– Não entendi. O carro não ia ser rebocado?
– São ordens superiores, chefe, e isso não se discute.
Quando voltamos a rodar no rumo de Alter do Chão e ainda abismado com o acontecido, meu filho repetiu pra mim uma antológica frase do presidente Charles De Gaulle sobre o Brasil.
– Pai, este país não é mesmo sério.
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