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A popularização de ferramentas de geração de imagens por inteligência artificial (IA) não é exatamente uma novidade e uma parcela muito grande da população com acesso digital faz uso com frequência, inclusive de produtores de conteúdos, englobando os informativos. Porém, um recente lançamento da OpenAI com o modelo GPT-4o escancarou uma discussão iminente: milhares de usuários passaram a transformar fotos e memes pessoais em ilustrações no reconhecível estilo de Hayao Miyazaki e do lendário Studio Ghibli — criadores de clássicos como “A Viagem de Chihiro”, “O Castelo Andante” e “O Menino e a Garça”, o que instantaneamente esquentou os debates críticos sobre propriedade intelectual, ética criativa e os limites legais do uso da IA.

O cerne da discussão gira em torno de um ponto bem delicado: o estilo artístico pode ser protegido por direitos autorais? A resposta, em teoria, é não — segundo o princípio jurídico do dilema ideia-expressão, os direitos autorais protegem a expressão de uma ideia (como uma ilustração específica), mas não a ideia em si (como um estilo ou técnica). No entanto, a aplicação prática é mais complexa.

Em jurisdições como os Estados Unidos (sob a U.S. Copyright Act) e a Índia (sob o Indian Copyright Act), obras derivadas — aquelas que reproduzem, adaptam ou transformam uma obra original — são protegidas pela lei e exigem autorização prévia do autor ou do titular dos direitos. O mesmo vale para os termos da Convenção de Berna, tratado internacional que rege o direito autoral em mais de 180 países, incluindo o Brasil e Portugal.

Nesse contexto, se a IA gera imagens que imitam com precisão o estilo Ghibli — a ponto de evocarem composições, cores, personagens ou atmosferas visuais inconfundíveis —, essas imagens podem ser interpretadas como obras derivadas não autorizadas, passíveis de infração. Até agora, não encontramos informações públicas de que a OpenAI tenha obtido licença para treinar seu modelo com obras do Studio Ghibli. Caso isso tenha ocorrido sem autorização, a empresa pode sim ser alvo de ações judiciais por violação dos direitos de reprodução e adaptação.

Um dos aspectos mais graves dessa nova realidade é que qualquer pessoa pode, inclusive inadvertidamente, infringir direitos autorais ao gerar ou compartilhar arte feita por IA, tipo o comando “recrie esta foto no estilo Studio Ghibli”. A popularização dessas ferramentas torna fácil ignorar ou desconhecer que usar um estilo icônico de forma comercial, ou mesmo viral, sem autorização pode representar apropriação indevida de propriedade intelectual.

É importante frizar que o uso de IA para fins pessoais ou não comerciais raramente chega aos tribunais, mas o cenário muda quando esses conteúdos são monetizados, publicados amplamente ou utilizados para substituir o trabalho de artistas humanos. Foram inúmeras as notícias de pessoas comercializando as ilustrações no estilo Studio Ghibli para outras sem acesso à versão paga do ChatGPT e não foram poucas as personalidades de grande alcance midiático, incluindo políticos e chefes de Estado – que, se não tem um mínimo de dissernimento crítico, deveriam ser assessorados por quem o tenha – que publicaram as ilustrações que copiam o traço do famoso estúdio em suas redes sociais. Ou seja, o que parece uma brincadeira inofensiva pode, em escala, minar direitos legítimos e valor cultural.

Hayao Miyazaki, fundador do Studio Ghibli e um dos maiores nomes da animação mundial, já expressou repulsa à arte gerada por IA. Em um vídeo de 2016 que voltou a circular viralmente agora, Miyazaki descreve como “um insulto à vida” o uso de IA para animar formas bizarras e sem propósito. Para ele, o trabalho do artista é uma expressão vital e insubstituível da experiência humana. Seu filho, Goro Miyazaki, também comentou recentemente que, embora reconheça o potencial criativo da IA, nenhuma máquina poderá substituir a visão artística de seu pai ou de Isao Takahata, cofundador do estúdio.

Mesmo assim, a OpenAI declarou que seu objetivo é “oferecer o máximo de liberdade criativa possível aos usuários”, embora afirme proibir a imitação direta de estilos de artistas vivos. Em teoria, apenas estilos de “estúdios amplos” seriam permitidos. A fronteira entre homenagem, inspiração e cópia é extremamente tênue.

Uma linha de defesa muito comumente usada por desenvolvedores de IA é a de que seus sistemas não reproduzem obras, mas criam conteúdos novos, o que, em alguns casos, pode ser considerado “fair use” (uso justo), especialmente nos EUA. No entanto, para se qualificar como tal, o conteúdo precisa atender a critérios como ter propósito educacional, crítico ou paródico; transformar significativamente a obra original; não prejudicar o mercado da obra original; e utilizar apenas trechos mínimos da obra protegida.

A questão central é se a IA reinterpreta ou replica. Quando as imagens geradas evocam diretamente cenas ou personagens notórios ao grande público, mesmo que com variações, o risco de infração aumenta consideravelmente.

Outro dilema importante é a titularidade da arte gerada por IA. Em muitos países, obras criadas unicamente por máquinas não são protegidas por direitos autorais, por não haver um “autor humano”. Isso significa que a arte feita por IA pode não ser protegida e ainda infringir direitos de terceiros, caso incorpore elementos protegidos de forma indevida. Ou seja: o conteúdo gerado não pode ser considerado de sua autoria e, ainda por cima, pode ser ilegal.

Ainda que a maior parte das pessoas use de forma lúdica e sem maldades, o risco jurídico e ético cresce exponencialmente quando essas imagens são vendidas como arte, estampadas em camisetas, NFTs, capas de livro, ou mesmo utilizadas em campanhas publicitárias e para fins políticos. O prejuízo à propriedade intelectual de estúdios como o Ghibli é direto e quantificável.

Em torno desta polêmica, inúmeros ilustradores têm abordado que o uso indiscriminado de estilos protegidos, através de ferramentas de IA, podem desvalorizar o trabalho de artistas humanos, que passam anos desenvolvendo uma identidade visual própria. Enquanto legislações específicas não forem estabelecidas, cabe aos usuários, empresas e governos refletir com responsabilidade sobre os limites do uso da inteligência artificial, e buscar um caminho que valorize tanto a criatividade humana quanto o potencial tecnológico — sem que um destrua o outro.

*Imagem em destaque retirada do filme “Sussurros do Coração” (Mimi wo Sumaseba), do Estúdio Ghibli.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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