Publicado em: 23 de março de 2025
A parte que falta é o título de um livro de Shel Silverstein, aparentemente feito para crianças, mas de uma profundidade que me faz duvidar se realmente era para esse público. O livro se refere a um desenho em formato de bola, porém sem uma parte, que podemos e devemos imaginar tratar-se de uma pessoa. A intenção, nesse encontro com meu leitor, é recontar a história do livro, a meu modo, e com uma abordagem psicanalítica.
O livro inicia dizendo que “faltava uma parte e ele não era feliz”. Por isso, decide sair pela vida em busca da parte que lhe faltava. Vive várias experiências excitantes e, quando algo não saía bem, usava como justificativa o fato de não ter a parte que faltava.
Experimentando aqui e ali, em alguns momentos conseguia grandes feitos e, outras vezes, permitia-se simplesmente olhar a paisagem ou desfrutar da companhia de amigos. Notava que essas “pequenas” coisas invadiam de prazer todo o seu ser.
Assim, o personagem atravessa oceanos, desbrava longínquos lugares e desfruta de incríveis experiências. Porém, sempre buscando a parte que lhe faltava.
Finalmente, um dia se deparou com uma parte e, de tão ansioso que estava, foi logo tentando encaixá-la. Mas a parte, que fazia terapia há muitos anos, foi logo dizendo: “alto lá! Não sou parte de ninguém. Sou parte completa. E, mesmo que fosse a parte que falta em alguém, não sou a sua parte!”. O outro, todo envergonhado, desculpou-se e seguiu caminho.
Após um tempo de caminhada, encontrou uma parte. Mas, era muito pequena… Adiante, avistou uma outra, mas, desta vez, muito grande…. Passado mais um tempo, esbarrou em uma muito pontuda. E, como nunca desistia, conheceu várias partes, com os mais variados formatos.
Eis que um dia encontra uma parte do tamanho ideal, mas não soube segurá-la com vigor e acabou por escapar-lhe. Em seguida, ao encontrar uma similar, segura-a com tanta força que acaba quebrando. Diante de mais uma impossibilidade, continuou a viver seus momentos de grandes aventuras e outros de terríveis vazios.
Certa ocasião, avistou uma parte que parecia caber. Entretanto, escabreado porque uma vez já havia sido rejeitado, não arriscou “de cara”, achou melhor perguntar. E, para sua surpresa, a parte topou e se encaixou perfeitamente. Isso o fez sentir-se radiante. Finalmente a paixão era mútua!
Lambuzou-se da companhia do outro de tal forma que o mundo deixou de existir ao seu redor. Não olhava mais a beleza da paisagem, parou de se encontrar com os amigos, não curtia seus hobbies, não cultivava seu jardim e abriu mão de seus pequenos prazeres. O relacionamento havia tomado todo o seu tempo. Não conseguia investir no que antes lhe fazia feliz. De repente, começa a notar que sequer conseguia cantar. Sentia-se terrivelmente preso ao outro. Então, imaginando haver cometido um equivoco, apartou-se e continuou sua busca por “aquela” parte que lhe falta.
Assim, acaba a história do personagem de Silverstein. Acontece que, no real, essa parte que buscamos é aquela que “perdemos” na infância quando percebemos que nossa mãe tem, para além de nós, outros interesses como, por exemplo, o marido e o trabalho. É nesse instante que sofremos nossa primeira quebra narcísica ao imaginarmos que algo nos falta e que se o resgatarmos seremos, outra vez, únicos diante do olhar materno. Daí a busca desenfreada de muitos por coisas ou por alguém. Não à toa, pessoas imaginam que se tiverem o máximo de coisas (carros, casas, etc) conseguirão ser algo.
Criamos a fantasia da completude. Olhamos para o outro e, algo de forma inconsciente, faz com que imaginemos ela (e) ser possuidora de tudo que desejamos. Mas o amor é sustentado pela fantasia e nada, nem ninguém, poderá completar-nos. Isso que buscamos Lacan chama de objeto a. A minúscula porque, de fato, não existe.
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