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Quando Rachel de Queiroz publicou O Quinze, em 1930, o então político e jornalista alagoano Graciliano Ramos desconfiou que o livro havia sido escrito por um homem sob pseudônimo feminino. Custou-lhe crer, naquela altura, que uma jovem cearense de apenas dezenove anos fosse capaz de produzir um romance de tamanha envergadura. Ante as evidências, contudo, reconheceu o talento da debutante e, no meu modo de ver, colheu influências que levou para a sua obra mais consagrada, Vidas Secas, lançado em 1938, oito anos depois da estreia de Rachel na literatura da seca.
 
O ímpeto transgressor daquela moça alencarina, que mais tarde revelou-se traço marcante da sua personalidade, rompeu barreiras, ignorou preconceitos e desprezou paradigmas. Com a força arrebatadora de seu dom, Rachel arrombou as portas do Olimpo Literário Nacional, até ali fechadas às mulheres. Não por acaso tornou-se, décadas adiante, já em 1977, a primeira escritora a ingressar na Academia Brasileira de Letras, coroando uma carreira brilhante que seguiu fecunda até as vésperas de sua morte, sobrepujando inclusive as acusações descabidas que lhe foram imputadas, patrulhamento ideológico menor se comparado à estatura moral e artística da autora, ícone da luta feminista, baluarte da emancipação da mulher ao correr do Século XX.
 
Por certo há digitais de Rachel de Queiroz nas fechaduras destravadas dos salões nobres da literatura brasileira, permitindo o acesso de expoentes como Hilda Hist, Carolina Maria de Jesus e, mais recentemente, Conceição Evaristo, esta última, por coincidência, fazendo história num silogeu, primeira mulher preta a tomar assento na Academia Mineira de Letras, empossada em março de 2024.
 
Hilda também foi sinônimo de transgressão ao abordar o erotismo sem meias palavras, assumindo uma obscenidade que chocou a sociedade da época. Basta lembrar de O caderno rosa de Lori Lamby, em que a narradora, uma menina de oito anos, resolve se prostituir com o beneplácito dos pais, registrando num diário as suas experiências e aventuras. Carolina de Jesus, por seu turno, subverteu a ordem prevalecente em seu tempo ao trazer a favela para o centro do mundo, dando voz e protagonismo aos marginalizados pela segregação econômica e racial ainda hoje aviltante, mérito semelhante ao de Conceição Evaristo, outro estandarte da democratização da cultura e da ruptura do cânone patriarcal branco pela afirmação da ancestralidade e da pessoalidade pretas, especialmente do ser mulher preta no Brasil contemporâneo.
 
Foram todas mulheres fortes, artistas conscientes de que da arte vem a redenção. Em comum a atitude transgressora, a ousadia que enxerga além da tradição, por detrás dos costumes reinantes. Através da literatura dispuseram-se a perscrutar a moral estabelecida para identificar suas fissuras, lançar luz às suas sombras e incitar o caos criador que existe nas contradições, afinal, como escreveu Saramago, o caos é uma ordem por decifrar.
 
Aliás, não se pode rememorar o Nobel lusitano sem referir sua enorme contribuição à língua portuguesa e à literatura universal, notadamente pelo rompimento dos padrões narrativos formais e pela pontuação livre e inovadora, que entendia virgulas e pontos como pausas, mais curtas ou mais longas, atribuindo ao texto escrito os movimentos de uma sinfonia – o início vibrante em allegro, apresentando o tema e expondo meios para explorá-lo; o desenvolvimento em adagio, moderato, conferindo-lhe lirismo e profundidade; o minueto em ritmo crescente, permeado por contundente crítica social e refinado sarcasmo, em preparação para o grand finale, costumeiramente memorável e desconcertante, toque de gênio de um dos maiores pensadores da lusofonia.
 
Em Saramago, todavia, a insurreição não foi meramente estilística, expandindo-se aos enredos, num ataque impiedoso e brutal aos tabus dominantes, disposição incansável para dizer o indizível e expor as mazelas e vícios de um mundo essencialmente injusto. Sua inquietação não guardava limites – política, comportamento social, exclusão, dominação, guerra ou religião -, a ponto de ver-se envolvido em inúmeras polêmicas, a maior delas a publicação de O evangelho segundo Jesus Cristo, motivadora de sua saída da terra mãe, Portugal, em direção às Ilhas Canárias espanholas, mais precisamente Lanzarote, numa espécie de exílio criativo do qual resultaram obras de vulto – Ensaio sobre a cegueira, A caverna, Ensaio sobre a lucidez e As intermitências da morte, entre outras.
 
Em todos esses casos, e em diversos outros, na literatura mas também na pintura, na dança, na música e no cinema, o progresso da arte e seu espalhamento advém da insurgência, do inconformismo, da transgressão, essa mola propulsora do mundo, viés evolucional do ser humano e de suas mais sublimes expressões de humanidade. É no desassossego dos artistas que a vida busca as sementes do amanhã.
 
Bem a propósito, num fechamento que vai como homenagem, na última sexta-feira assisti Homem com H, o novo cult movie nacional, biografia audiovisual de Ney de Souza Pereira, mais conhecido como Ney Matogrosso, um dos maiores cantores que esse país já produziu, na verdade um de seus maiores artistas. Impecável como intérprete, dono de uma voz masculina de rara beleza, ousado nas coreografias e abusado nos figurinos, Ney confere ares de espetáculo à mais singela de suas apresentações.
 
Nada se pode questionar, portanto, quanto ao seu valor enquanto artista musical, mas Ney sempre quis mais. É da transgressão permanente que vem seu principal contributo às artes, seu mais valioso legado. Atuando continuamente no limite extremo da sua criatividade artística, ele fez revirar em espasmos as vísceras do moralismo retrógrado, afirmando e reafirmando cotidianamente a mais sagrada das condições humanas, valor e direito fundamental pretensamente insubmisso: a liberdade.
 
Muito se deve a Ney de Souza Pereira, um artista que não vi jurar mentiras embora tenha assumido seus pecados. Se nas searas da cultura o Brasil fez seus próprios ventos moverem moinhos, ainda que por caminhos tortos, parte desse préstimo se deve atribuir aos gritos e desabafos que ele lançou no espaço, sabedor, como foi em plenitude, que o que importa é não estarmos vencidos.

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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