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No último dia 20 de outubro foi anunciado que Paulina Chiziane havia sido escolhida por unanimidade do júri para o Prêmio Camões 2021. A honraria concedida à escritora de sessenta e seis anos, a primeira mulher a publicar um livro em Moçambique, já nos anos 1990, é inegavelmente um marco e um posicionamento político e eu, ao ler a notícia, tive vergonha da minha ignorância por nunca a ter lido e resolvi correr atrás do prejuízo.

Já há alguns anos fui forçada a abandonar os livros de papel – que tanto adoro – por motivos práticos de espaço e de uma vida que, na altura, era praticamente nômade. Alguns leitores mais puristas ainda hoje torcem o nariz ao kindle, porém é incontestável que este tipo de dispositivo permite ao usuário um acesso aumentado à leitura, seja pelo preçário significantemente menor dos e-books em relação aos impressos, seja pelo acesso imediato, sem necessidade de deslocamento, encomendas, etc., a um catálogo praticamente infinito, em seus idiomas originais ou qualquer tradução existente. Esta expectativa, entretanto, não foi a realidade em relação à minha inicialização à obra de Chiziane. Encontrei apenas três títulos no formato digital, os mais novos, o que já para começo de conversa estragou completamente a minha metodologia de ler/ver/ouvir um artista “novo” em ordem cronológica de criação, para perceber a evolução e, às vezes, a revolução. Enquanto isso, Sally Rooney, escritora irlandesa de trinta anos da qual eu havia terminado de ler a obra no dia anterior, está toda lá.

Longe de mim desmerecer minha “colega” millennial, com quem, em termos de contexto de vida, me identifico muito mais do que com Chizane, apesar de partilharmos a língua portuguesa e de também ser de um país de terceiro mundo, que carrega na história todos os horrores e feridas do colonialismo. Fico feliz de, apesar dos pesares, ser possível para as mulheres da minha geração realizar coisas impensáveis para mulheres de outros tempos, nem tão longínquos assim. O que me deixa possessa é termos acesso reduzido – muitas vezes nulo – a obras de tantas mulheres de relevância artística inquestionável.

Da última vez que estive em Belém, um dos meus objetivos de viagem era preencher a lacuna sobre a obra de Eneida de Moraes, de quem li apenas Aruanda e Banho de Cheiro, que estão na biblioteca de casa. A missão foi um fracasso: não encontrei seus outros livros para comprar. E notem que eu nem me iludi em achar e-books da escritora paraense, um ícone da literatura, do jornalismo, do ativismo político brasileiro. Já a obra de Graciliano Ramos, seu contemporâneo e companheiro de prisão, pode ser acessada por apenas um click – inclusive Memórias do Cárcere, no qual Eneida está retratada.

Chiziane é a sétima mulher a receber o Prêmio Camões em seus trinta e três anos de existência. A única africana, a única negra. Aprendeu o português na escola de uma missão religiosa católica, suas línguas-mães são o chope e o ronga. Ingressou na universidade para estudar linguística, porém nunca concluiu o curso. É de uma simplicidade desconcertante (não deixem de assistir a entrevista à Euronews reproduzida no final da página) e sua escrita é de uma beleza que toca o útero de uma mulher que a lê. Ela é voz de muitas mulheres, mulheres que não sou eu, mas que, mesmo sem nunca ter vivido nada daquilo, consigo sentir a profundeza de suas lágrimas e anseios. Sua prosa é poesia, suas linhas são curvas. Curvas, como ela diz, do jeito que todos os animais dormem. Não consigo mais largá-la, a cada minuto de folga devoro suas páginas, e sofro por antecipação pela epopeia que será conseguir o que falta de sua obra. Torço para que o Camões mude isto.

Torço para que um dia eu tenha a oportunidade de conhecer África, este continente irmão nosso, americanos, de mar, suor e lágrima. Torço para que um dia não seja necessário reivindicar o acesso, a projeção e o reconhecimento de artistas por seu gênero, origem, cor de pele, orientação sexual – mas até lá temos que lutar pela democratização das artes sim. Torço para que mais mulheres como Paulina Chiziane ganhem o mundo porque, na verdade, é o mundo que ganha com elas.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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5 Comentários

  1. Também não li nada dela, ainda.
    Já está na minha lista!!!

    1. Vais amar, tenho certeza! ❤️

  2. Notícia fantástica, Gabriella!
    Quando falamos em cânone, na literatura, estamos expressando exatamente isso: a seletividade política da arte e da estética.
    A arte é também um espaço de emergências, mas o é, sobretudo, de silenciamentos.
    Há tempos em que os poetas estiverem expulsos da república; em outros tempos estiveram no comando, emprestando sua pena às revoluções.
    Há arte marginal no Leblon, assim como há arte hegemônica na veia dos poetas pobres e loucos.
    Premiar uma escritora negra, de Língua Portuguesa ultramarina, africana, é também um importante sinal dos movimentos da política: é uma abertura no cenário para a emergência de outras vozes, cores e tintas.
    Depois de Chimamanda Ngozi ganhando o mundo, esse prêmio sinaliza abertura de fronteiras.
    É politicamente relevante não termos toda a obra da Eneida no Kindle, nem hospedado no domínio público.
    Foi a escola mesmo quem elegeu os clássicos “imperdíveis” da literatura.
    No Brasil, a política cultural e educacional estão centralizadas no eixo Sudeste.
    As opções políticas sempre foram estreitas para nós. Opções estéticas também.
    Sempre foi mais difícil conhecermos Max Martins do que Vinicius de Moraes. Alceu Valença é mais familiar do que Pinduca.
    É o tal controle político da arte.
    Mas nós vamos continuar empurrando o portão dessa grande muralha!
    Já vou acrescentar esta dica de leitura.

    1. Notícia fantástica, Gabriella!
      Quando falamos em cânone, na literatura, estamos expressando exatamente isso: a seletividade política da arte e da estética.
      A arte é também um espaço de emergências, mas o é, sobretudo, de silenciamentos.
      Há tempos em que os poetas estiverem expulsos da república; em outros tempos estiveram no comando, emprestando sua pena às revoluções.
      Há arte marginal no Leblon, assim como há arte hegemônica na veia dos poetas pobres e loucos.
      Premiar uma escritora negra, de Língua Portuguesa ultramarina, africana, é também um importante sinal dos movimentos da política: é uma abertura no cenário para a emergência de outras vozes, cores e tintas.
      Depois de Chimamanda Ngozi ganhando o mundo, esse prêmio sinaliza abertura de fronteiras.
      É politicamente relevante não termos toda a obra da Eneida no Kindle, nem hospedada no domínio público.
      Foi a escola mesmo quem elegeu os clássicos “imperdíveis” da literatura.
      No Brasil, as políticas cultural e educacional estão centralizadas no eixo Sudeste.
      As opções políticas sempre foram estreitas para nós. Opções estéticas também.
      Sempre foi mais difícil conhecermos Max Martins do que Vinicius de Moraes. Alceu Valença é mais familiar do que Pinduca.
      É o tal controle político da arte.
      Mas nós vamos continuar empurrando o portão dessa grande muralha!
      Já vou acrescentar esta dica de leitura.

      1. É isso. Um beijo pra ti e boa leitura! ❤️

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