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O dia 16 de junho é um marco cultural na nossa Santa Maria de Belém do Grão Pará. Prefeito de Belém à época, o nosso confrade Zenaldo Rodrigues Coutinho Júnior sancionou a Lei nº 9.164, de 18 de dezembro de 2015, que instituiu a data de falecimento do escritor Dalcídio Jurandir como o Dia de Alfredo.

O vereador Moa Moraes, do PCdoB, por indicação do Oficial de Chancelaria do Itamaraty e sobrinho do escritor, o marajoara José Varela, propôs à Casa legislativa da capital a instituição dessa data emblemática em reconhecimento à trajetória e legado do icônico escritor e romancista paraense Dalcídio Jurandir, e a Câmara Municipal de Belém aprovou o projeto de lei de sua iniciativa.

Há uma década essa data deveria ser celebrada, mas apenas a partir de agora se efetivará, graças à Academia Paraense de Letras, que, compromissada com a valorização de legados literários, convidou seus membros imortais e a sociedade paraense para este momento inédito e memorável da nossa cena cultural: a celebração do Dia de Alfredo em homenagem ao inesquecível personagem protagonista em nove das dez obras do célebre escritor. Assim, a noite de hoje nos reúne para celebrarmos um filho ilustre da nossa Amazônia paraense, o marajoara Dalcídio Jurandir.

Nascido Dalcídio Ramos Pereira em 10 de janeiro de 1909, na antiga Vila de Ponta de Pedras, hoje município do arquipélago do Marajó, filho de Alfredo Pereira e Margarida Ramos, o pequeno que veio à luz em um chalé à beira do rio, ainda hoje existente, viria a se consagrar no campo literário inspirado na imensidão dos campos, das águas e das florestas da Amazônia marajoara. 

A infância vivida no Marajó, já em Cachoeira do Arari para onde a família se mudou em 1910, foi o primeiro território educativo de sua vida, onde aprendeu com sua mãe as primeiras letras e que mais adiante seria fonte inspiradora de sua primeira e grande obra, o icônico livro Chove nos Campos de Cachoeira.

Sua trajetória de escolarização foi na escola pública. Inicialmente em Cachoeira do Arari estudou na Escola Mista Estadual a partir de 1916. Fez o curso primário do Professor Francisco Leão, em 1921. Ao migrar para Belém, em 1922, já adolescente, estudou em dois tradicionais estabelecimentos de ensino, o Grupo Escolar Barão do Rio Branco, que anos mais tarde seria representado em alguns de seus romances, onde concluiu os estudos primários em 1924. Em 1925 matriculou-se no Ginásio Paes de Carvalho, onde interrompeu os estudos para uma nova migração.

Essa breve trajetória reproduz a de tantos meninos e meninas interioranas da nossa Amazônia, que migram para a cidade embalados pelo sonho de uma vida promissora e próspera.

Em 1927, antes mesmo de completar o segundo ano, migrou para o Rio de Janeiro (RJ), a bordo do navio do Lloyd Brasileiro, Duque de Caxias, em 1928. A vida não foi fácil e precisou enfrentar muitas dificuldades no Rio. Da origem humilde no Marajó ao trabalho de lavador de pratos no Café e Restaurante São Silvestre, as experiências ensinaram Dalcídio Jurandir sobre condições de vidas simples do povo, das chamadas pessoas comuns, que também comporiam suas narrativas literárias. As contradições do sistema, as desigualdades sociais e as assimetrias regionais sempre estiveram traduzidas pela sua sensibilidade literária e visão política.

Em 1961 Dalcídio Jurandir escrevera na Folha do Norte:

“Todo o meu romance distribuído, provavelmente, em dez volumes, é feito, na maior parte, da gente mais comum, tão ninguém, que é a minha criaturada grande de Marajó, Ilhas e Baixo Amazonas. Fui menino de beira de rio, do meio do campo, banhista de igarapé. Passei a juventude no subúrbio de Belém, entre amigos, nunca intelectuais, nos salões da melhor linhagem que são os clubinhos da gente de estiva e das oficinas, das doces e brabinhas namoradas que trabalhavam na fábrica. Um bom intelectual de cátedra alta diria: são as minhas essências, as minhas virtualidades. Eu digo tão simplesmente: é a farinha d’água dos meus bijus. Sou um também daqueles lá, sempre fiz questão de não arredar o pé da minha origem e para isso, ou melhor, para enterrar o pé mais fundo, pude encontrar uma filiação ideológica que me dá razão. A esse pessoal miúdo que tento representar nos meus romances chamo aristocracia de pé no chão.”

Desse tempo no Rio de Janeiro ficaram as aprendizagens na labuta da atividade jornalística, tendo trabalhado como revisor da revista “Fon-Fon”, mesmo que sem remuneração.

Naquela altura do retorno do Rio, seu amigo Dr. Raynero Maroja emprestara livros clássicos de autores portugueses e nacionais, cujas leituras lhe fizeram companhia na viagem de volta no mesmo navio Lloyd.

Aos 20 anos, em 1929, a solidariedade de seu amigo e grande incentivador de suas habilidades literárias, Dr. Raynero, então Intendente Municipal de Gurupá, foi expressa na nomeação como Secretário Tesoureiro da Intendência Municipal. E foi lá em Gurupá, que também compõe o Arquipélago do Marajó, que a primeira versão de “Chove nos campos de Cachoeira” foi escrita.

Assim Dalcídio Jurandir viveu sua primeira função pública, que mais tarde seria ampliada com diversas atividades que marcaram seu percurso como funcionário público, a exemplo da atuação como auxiliar de gabinete da Interventoria do Estado; a Diretoria de Educação e Ensino, onde fora designado para a comissão de Inspetor Escolar no município de Salvaterra em 1938, em seu retorno ao Marajó; e na Delegacia de Recenseamento em 1941.

O viés jornalístico experenciado aos 20 anos no Rio de Janeiro foi intensificado na década de 1940 com sua passagem por diversos meios da imprensa e papéis exercidos, a exemplo do jornal “O Radical”, “Diretrizes”, “Diário de Notícias”, “Correio da Manhã” e revista “Leitura”, tendo atuado como redator, repórter e colunista. Redigiu, ainda, textos publicitários e legendas para filmes de educação sanitária no Serviço Especial de Saúde Pública – SESP.

O reconhecimento nacional de Dalcídio Jurandir foi alcançado em 1940 ao conquistar o Prêmio Dom Casmurro de Literatura, com o seu primeiro romance “Chove nos Campos de Cachoeira”, concedido pelo jornal homônimo do Prêmio e a Editora Vecchi. Do júri estrelar faziam parte, entre outros, Oswald de Andrade, Rachel de Queiroz e Álvaro Moreira.

Engajado nas lutas de seu tempo, Dalcídio Jurandir foi um ativista político, um comunista assumido, tendo participado do movimento da Aliança Nacional Libertadora e sido preso pela primeira vez em 1935, encarcerado por dois meses no antigo presidio São José, atual Espaço São José Liberto, Polo Joalheiro do Pará. Preso novamente dois anos depois, em 1937, ficou três meses detido.

Aliando atividade laboral e política, em 1945 e 1946 Dalcídio fez parte da redação do jornal “Tribuna Popular” e colaborou nos jornais “A classe operária”, “O Jornal” e na revista “O Cruzeiro”. Jornalista engajado, cobriu a greve do movimento estivadores e arrumadores do porto do município de Rio Grande (RS).

Sua destacada luta e militância pelo Partido Comunista do Brasil (PCB) à época, favoreceu a viagem à antiga União Soviética, em 1952, com uma comitiva de intelectuais latino-americanos. No ano seguinte, em 1953, esteve no Chile, onde participou do Congresso Continental de Cultura. O reconhecimento de seu ativismo e de sua produção literária oportunizara a circulação internacional também.

Experiências nacionais e internacionais foram marcantes, mas na cronologia de suas obras constata-se que a Amazônia marajoara seguiu sendo sua fonte inspiradora. Marajó foi o seu segundo livro, em 1947, e assim a Amazônia foi sendo desvelada em sua diversidade natural e cultural por um amazônida. Em 1958 é lançado o seu terceiro romance: “Três casas e um rio”. Em 1959 o romance “Linha do Parque” é publicado, tendo a edição russa lançada em Moscou, em 1962, apresentação de Jorge Amado, o que lhe abriu muitas portas. Em 1960 publica “Belém do Grão Pará” que, segundo Benedito Nunes, “introduz a paisagem urbana da Amazônia na literatura brasileira”.

         Na senda dessa produção literária a vida proporcionou a amizade da vida toda com Jorge Amado, o grande articulador do merecido Prêmio Machado de Assis concedido em 1972 a Dalcídio Jurandir pela Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra.

Outras premiações marcaram sua trajetória literária. O Prêmio Paula Brito, da Biblioteca do Estado da Guanabara, e o Prêmio Luiz Cláudio de Souza, criado pelo Pen Club do Brasil, destacam-se como alguns dos mais importantes reconhecimentos à sua obra literária e jornalística.

Publica, em 1963, “Passagem dos inocentes” e em 1967, Dalcídio Jurandir termina a escrita de “Os habitantes”. Em 1968 lança “Primeira manhã” e conclui “Chão de Lobos”, penúltimo romance da série “Extremo-Norte”. O último romance da série, que se passa em Gurupá, “Ribanceira”, foi concluído em 1970. O romance “Ponte do Galo”, editado em 1971, marca a sua aposentadoria como escritor.

         Nosso ilustre Professor Doutor Paulo Jorge Martins Nunes, um dos exímios especialistas na obra dalcidiana, que na noite de hoje nos brinda com uma palestra, em sua tese de doutorado ao eleger a obra Belém do Grão Pará como objeto de estudo afirma e interroga “… Aqui, entretanto, como na maioria dos livros do Ciclo Extremo Norte, perceberemos Alfredo – sob a máscara desta personagem esconde-se o próprio autor? – em suas transformações e aprendizado cotidianos”. Paulo Nunes pontua que “… muitos leitores veem Alfredo, personagem central e recorrente nas obras do Ciclo Extremo Norte, como o alter-ego de Dalcídio Jurandir”. Assim, Alfredo esteve presente com diferentes facetas em obras dalcidianas.

Em tempos que nossa Santa Maria de Belém do Grão Pará sediará a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP-30, revisitar obras de Dalcídio Jurandir é super atual para compreender a Amazônia, ou pode-se melhor dizer as Amazônias, na sua diversidade e pluralidade, nas dimensões rural e urbana, na exuberância de suas florestas e imensidão de suas águas, a urbe e urbanidade da capital paraense.

Dalcídio Jurandir nos deixou um legado de narrativas e sabedorias sobre a Amazônia, substantivo feminino singular, território plural de toda gente que nela habita, expressão grandiosa da mãe terra que clama por cuidados frente às emergências climáticas que nos assolam. Sigamos inspirados por Alfredo, Amélia, Libânia e tantos personagens amazônicos das narrativas ficcionais que fizeram de nosso imortal Dalcídio Jurandir um dos amazônidas mais compromissados com um presente e futuro sustentável.

Ao escrever recentemente sobre geopoéticas, literatura e resistência-metáfora pela natureza, nosso brilhante Paulo Nunes, que nos honra com sua presença nesta noite, situa Dalcídio Jurandir na linha das ecopoéticas amazônidas, reconhecendo-o talvez um dos melhores de seu tempo como um agroliterato“… um dos principais nomes de uma literatura de resistência, em prol da defesa de biomas amazônicos”.

Dia de Alfredo não é um lamento pela morte de Dalcídio Jurandir em 16 de junho de 1979, mas a celebração do legado daquele menino do interior marajoara de outrora que chegara em Belém de mala e cuia, para despontar no panteão dos escritores modernistas e alçar a literatura da Amazônia a um patamar de reconhecimento de seu gigantismo, como é a vastidão de suas águas e matas.

Que venham muito mais noites de 16 de junho para celebrarmos a geopoética amazônica, a agroliteratura dos campos e águas do maior arquipélago fluviomarinho do mundo, o nosso Marajó de todas as vozes, sentidos, cheiros, saberes e sabores. 

*Discurso proferido como oradora oficial da APL no Dia de Alfredo.

Foto: Fernando Sette

Betânia Fidalgo Arroyo
Betânia Fidalgo Arroyo é titular da cadeira n° 2 da Academia Paraense de Letras, reitora da Unama, presidente do Conselho Estadual de Educação e da Fundação Escola do Legislativo do Pará.

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