Publicado em: 15 de junho de 2025
“Metade da beleza depende da paisagem;
e a outra metade da pessoa que olha para ela …”
É muito atual a mensagem do poema “Beleza”, de Herman Hesse. Com o ritmo do dia, auroras e ocasos vêm e vão. No curso deles, acontecem vida, alegrias e tristezas, sóis e chuvas, cores e emoções, compondo o que sentimos como a alegria que nos impulsiona a seguir, nosso elã vital.
A alegria da beleza
A beleza de um dia nascendo com um sol dourado no horizonte, ou com nuvens acinzentadas, deixando penetrar suavemente a luz, com intermitências de chuva fina, não é de um valor em si mesmo, perceptível para todos na mesma intensidade e frequência, mas uma comunicação entre a natureza e a alma singular, que decodifica a mensagem implícita no ato da criação das coisas e as interpreta.
A alegria de partilhar
A chegada de um parente distante, carregada de saudade das ausências sentidas, para uma passagem rápida de abraços e memórias trocadas, com risos soltos e distraídos, entre uma recordação e outra, calorosa como uma abraço quente, antes das intermitências de nova despedida, com acenos ao longe, são emoções que brigam pela presença inteira no momento do encontro.
A alegria da comensalidade
Os preparativos de uma festa intimista para pessoas amadas, com o cuidado na elaboração do que se come, do que se bebe… O arranjo da música ambiente às flores dispostas à mesa; um poema pensado meticulosamente para ser lido, um discurso emotivo, orações e homenagens, cantorias desentoadas noite adentro, tudo o que evoca afeto necessário para a pausa em todo o curso das vidas individuais em homenagem ao rito coletivo daquele encontro. Companheiros que comem, bebem e riem juntos, abrindo mão de outras agendas por aquela partilha uns dos outros, quando fluem energias elevadas e permutadas entre almas cem por cento presentes na mesma frequência e amplitude dessa comensalidade.
A alegria da solitude
O silêncio do cair da tarde, de frente para um mundo de águas, sentindo uma brisa fresca lamber de leve o rosto e brincar com os cabelos. Uma criança correndo ao longe, com os pés em busca de uma bola alegre pulando no chão de areia solta. Talvez mais distante uma barraquinha de água de coco compondo a paisagem com uma palmeira alta, brincando de rumar o vento, como uma biruta de aeroporto. Enquanto isso, a alma reza para um Deus poderoso e presente em todas as coisas. Mesmo a alma dos ateus se ajoelha nesse altar sagrado sem paredes em oração silenciosa. A solitude é um fruir solitário: um encontro marcado consigo mesmo.
A alegria da amizade
Uma conversa entre amigos de raros encontros, em algum dia marcado para dar um intervalo nas agendas apressadas da vida moderna. Uma pausa para revisar o cotidiano, para costurar e desfiar teias de amenidades e, às vezes, para chorar a dois, dividir catarses e somar alívios de fardos pesados que a vida nos coloca por sobre os ombros. Entre um gole e outro de uma bebida refrescante, dividir o estar-aí com o outro, que está te brindando com o seu estar-aqui. Respirar atento à sinfonia de notas olfativas do aroma de café fumegante. É preciso estar inteiro aqui para estar com o outro. Estar é frequência e amplitude de presença.
A alegria da redescoberta
O fim de um amor Eros: tempo para colocar a alma de molho e estendê-la no varal. Tempo para passar a vida a limpo de um caderno de borrão em letras abertas a lápis, para durar o tempo necessário de registro, até o piso do coração estar pronto para se imprimir novas histórias na pele. Esse tempo é também de fruição. Fruir a delícia de estar em transformação, ainda que pela via dolorosa da perda do que já foi uma parte de si. Tornar-se outro a partir da ruptura, para que, inteiro, aquele que se despede de um antigo grande amor possa refazer a si mesmo, se desprendendo de sua metade-outra. Há um tempo de duração para este processo de reinvenção. O corpo e a alma devem obedecer as batidas imperativas desse relógio, para que a matéria física decante paulatinamente o conteúdo do outro que já habitou em si, nessa indústria de emoções.
A alegria de prosperar
Do suor do trabalho humano sobre a terra serão devidos os frutos e produtos a serem colhidos. Dos primeiros tostões suados, trocados pela mão-de-obra de trabalhos de aprendiz, até o salário justo de carreira. Tudo um processo que traz o regozijo pelo mérito. Empreender com coragem e perseverança, quando não se nasceu em berço dourado, nem se tomou chá em bule de prata, também conduz à linha de chegada dessa corrida de esforço e recompensa. Construir aos poucos o que é seu por direito, exige que se esteja presente nas alegrias dessas sólidas conquistas, com honestidade e denodo, dando a si e aos seus a dignidade do conforto material. Para isto há um processo proporcional à alegria da recompensa.
A anedonia
Uma sociedade cujos indivíduos aderem a novos códigos de comunicação e de sociabilidade, vai perdendo a emoção de experimentar o prazer das coisas simples da vida, ou, ao menos, vai redefinindo significantes e significados.
A alegria da beleza e da exuberância da natureza se esvazia e se transmuta em emoções supérfluas quando capturadas por uma lente, como plano de fundo para uma bela imagem digital ou para a composição de uma galeria de imagens, em busca de aprovação virtual.
A alegria de partilhar se dilui quando os encontros calorosos de pessoas que se gostam são adiados ou substituídos por reuniões virtuais, mediadas por uma tela fria, impossível para o calor de um abraço.
A alegria da comensalidade despenca do pico mais alto quando, embora presentes, todos se afugentam na superficialidade de suas telas coloridas e no artifício das selfies, que registram encontros de pessoas ausentes, refugiadas em diálogos paralelos em chats virtuais e no fluxo irrefreável de conteúdos das redes sociais.
A alegria da solitude exige introspecção e conexão plug and play com o ambiente e com a própria intimidade. A dispersão reduz a solitude à solidão. A mente barulhenta é abduzida pelo entretenimento virtual e pela busca da selfie perfeita. Fragmenta-se a presença do eu.
A alegria da amizade se pasteuriza na frieza das amizades virtuais. Os encontros de teclas, sem olhares, sem gestos e meneios, sem a espontaneidade dos diálogos não editados, sem toques descuidados, abraços e apertos de mãos, não são senão simulacros de amizade.
A alegria da redescoberta e seu tempo de maturação e mudança se liquefaz na emergência pela mudança de status nas redes sociais, que exige a pressa urgente da superação, novos status e histórias com um rodízio frenético de pares que se sucedem na velocidade ditada por egos coletivos narcísicos.
A alegria de prosperar se ressignifica no ambiente de valorização da riqueza meteórica, do colecionismo compulsivo, da ostentação compulsória, do desperdício como simbologia de poder e da reificação do sucesso, na apologia ao aprofundamento da desigualdade profunda como métrica de bem-estar pessoal.
A revolução da internet revela “eus” que, à procura da experiência de uma vida plena de visibilidade , intensidade e hedonismo, paradoxalmente, experimentam o exato oposto. São subjetividades complexas e em processo de descoberta, nesta dupla experiência de vidas real e vida virtual.
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