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Eva é uma criança inteligente e vivaz. Entre um passatempo e outro, adora se atirar no modo flecha sobre a cama dos pais, exatamente entre eles. A mãe de Eva está sempre ocupada com as tarefas da casa e com o trabalho. Sai de casa logo pela manhã, bem cedo. Eva ainda está na cama. Quando a mãe volta para casa no final do dia, se ocupa com os afazeres domésticos e com a atenção à filha e ao marido.

O pai de Eva é também muito ocupado. Entre os plantões da enfermagem e os bicos que faz cuidando de pacientes domiciliares, quase não tem tempo tempo sobra para os afazeres domésticos e para acompanhar o desenvolvimento da filha. Aos finais de semana, Eva, a mãe e o pai organizam atividades conjuntas; visitam parentes e se divertem um pouco, para desopilar da semana corrida. Eva e seus pais são uma família brasileira padrão. Mãe em dupla jornada, pai em dois empregos, correndo para garantir o padrão de consumo de uma família de classe média baixa do Brasil.

Matheus é um garoto tímido e nervoso. Desde que os pais romperam a união estável, o garoto tem apresentado problemas na escola, com decréscimo de suas notas e até reprovação escolar. A mãe de Matheus trabalha durante o dia todo em um salão de beleza e conta com ajuda da avó do garoto enquanto sai para trabalhar. O pai de Matheus caiu no mundo e abandonou mãe e filho. O destino é ignorado, para escapar da justiça e dos deveres inerentes à paternidade. Matheus é um entre muitos brasileiros que vivem sob os cuidados da mãe e dos avós.

Aline e Cauã são duas crianças adoráveis. Vão à escola e adoram jogar videogame. A mãe de ambos precisou mudar-se para uma cidade maior em busca de trabalho, deixando-os com os avós em uma pequena casa. A rotina dos avós das crianças mudou muito, desde que assumiram os cuidados e a educação de ambos. O pai de Aline nunca reconheceu a paternidade nem contribuiu com o sustento da pequena. Sempre ocultou o paradeiro, dificultando intimação judicial para ação de investigação de paternidade. O pai de Cauã contribui com um pequeno valor determinado em ação judicial de alimentos, mas não se dispõe a conviver com a criança nem a participar da educação dela.

Luciana e Maria são servidoras públicas. Desde que decidiram assumir o relacionamento e oficializar a relação, ambas enfrentam socialmente o desafio de uma relação homoafetiva perante uma sociedade excludente e preconceituosa. Ambas, que residem em uma cidade de médio porte, manifestam o receio de demonstrar afeto publicamente. A família de Luciana, embora tenha sofrido bastante no começo do seu relacionamento, atualmente manifesta apoio ao casal, com o qual convive pacificamente, apesar de alguns conflitos vez por outra. A família de Maria, no entanto, reagiu negativamente à relação desde o começo, considerando-a uma vergonha para o agregado familiar rigoroso com os costumes evangélicos. O casal enfrenta dificuldades, mas luta pelo direito à felicidade.

Marcelo e Diego, desde a adolescência, fase de descoberta da sexualidade, sofrem com as pressões social e familiar sobre a homossexualidade. Os dois vivem em um relacionamento não oficial. Quando decidiram morar juntos, o pai de Marcelo cortou relações com o filho. A mãe, para manter a relação com Marcelo, finge que o filho e Diego são apenas amigos que dividem o aluguel e as despesas. Os pais de Diego, depois de muitos conflitos, aceitam a relação de ambos, mas demonstram constrangimento diante das manifestações públicas de afeto do casal. Quando a família se reúne em datas comemorativas, Marcelo e Diego percebem a pressão para que não troquem carinho publicamente e para que se portem como apenas amigos. O casal sofre, assistindo a intimidade e afeto entre os casais heteroafetivos da família, mas entende que essa é a condição para uma boa convivência familiar.

As situações acima ilustram alguns tipos comuns de arranjo familiar no Brasil. Desde que o casamento entre pessoas do mesmo sexo no Brasil foi juridicamente regulamentado, o conceito jurídico de família foi ampliado para proteger, também, as relações homoafetivas. As pessoas do mesmo sexo passaram a ter direito a constituir um agregado familiar e à adoção. Crianças que moram com os avós, ou com um deles, mães-solo, que obtém a guarda exclusiva ou compartilhada dos filhos, casais homoafetivos, que adotam crianças ou que as concebem naturalmente, tios que detém a guarde de sobrinhos, são possíveis arranjos sociais que ampliam o conceito de família no direito, legitimando o que já era um fato social que reclamava proteção jurídica.

Na mesma semana em que o chefe da igreja católica, o líder religioso Para Leão XIV se manifestou em defesa da família tradicional, formada pelo homem e pela mulher, negando o apoio da igreja para milhares de católicos, o folhetim televisivo tematizou a empreitada de um casal homoafetivo, formado por duas mulheres, para oficializar a adoção de uma menina. A trama centraliza o ato de adoção no amor e no desejo de oferecer um lar, afeto e cuidado à criança. Em meio a isso tudo, alguns embates em torno de questões como: quem seria o pai e quem seria a mãe da criança? Questionamentos atinentes aos papéis sociais normativos, em relação ao agregado familiar: essa criança não sofrerá discriminação social, por pertencer a uma família fora do padrão? Como será na escola, em datas comemorativas? Os diálogos da trama em torno dessa questão reproduzem situações corriqueiras enfrentadas por famílias constituídas a partir de relações não normativas de arranjo familiar.

Entre os possíveis arranjos familiares, podemos citar:  a família matrimonial, hétero ou homoafetiva, definida pela oficialização do matrimônio civil ou religioso. O casal pode ou não possuir filhos (biológicos ou adotivos). A família informal:  apresenta a mesma configuração e o mesmo amparo legal da família matrimonial, entretanto, é baseada na união estável, não oficializada, do casal. A Família monoparental: é composta por apenas um dos progenitores, pai ou mãe, independente dos motivos que conduzem a essa formação – morte, abandono, divórcio ou decisão voluntária. Família anaparental:  o termo anaparental refere-se à ausência dos progenitores. Nesses casos, em geral, os irmãos vivem em um mesmo lar, sem a presença dos pais. Pela lei, a mesma denominação e valores são utilizados nos casos da composição de um lar a partir de relações de afeto e amizade entre os membros, sem laços de parentesco. Família reconstituída: é composta em um novo matrimônio, quando pelo menos um dos cônjuges possui um filho de um relacionamento anterior.

Os vários modelos de arranjo familiar evidenciam que o conceito de família não é biológico nem natural, definido exclusivamente por consanguinidade, mas historicamente construído e sociologicamente em construção. O direito brasileiro tem evoluído para proteger juridicamente todas as formas de organização familiar, ampliando o conceito constitucional de família. Ainda que nosso modelo constitucional contemple o parentalismo, o biparentalismo ou o monoparentalismo, temos caminhado para a legitimação familiar com base no afeto.

É possível que, analisando a evolução da organização das sociedades, estejamos construindo esse núcleo social com base no afeto e no cuidado mútuos, como fonte de legitimação e marcador principal da organização social desse ambiente primário de sociabilidade.

A família, meu amor

Nexo forte de fios puros

que sempre une homens,

cobrindo seus nomes como este

paredes indestrutíveis baixas.

Nem mal nem feitiços

Eles podem danificar sua essência,

Ela é presença vital,

Núcleo da sociedade,

Bastião da humanidade:

A família, meu amor.

(Juan Ortiz)

Shirlei Florenzano Figueira
Shirlei Florenzano, advogada e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA, mestra em Direito pela UFPA, Membro da Academia Artística e Literária Obidense, apaixonada por Literatura e mãe do Lucas.

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