Há 40 anos o escultor, fotógrafo, pintor e ativista polonês Frans Krajcberg encomendou ao amigo e também ativista socioambiental João Meirelles a sua biografia, que será lançado em março, com informações exclusivas e fotos inéditas, pelas Edições Sesc e a Edusp. Nascido na Polônia em família judaica e sobrevivente do Holocausto, o artista fez da arte sua trincheira.
Naturalizado brasileiro, Frans Krajcberg é considerado um dos maiores artistas do século 20. Participou de mais de 200 exposições coletivas e 92 individuais, ganhou prêmios internacionais e foi presença constante nas Bienais de Arte de São Paulo. Inspira e influencia muitos artistas contemporâneos.
Krajcberg e seu futuro biógrafo se conheceram em 1984 na casa do artista Sepp Baendereck. No ano seguinte, a ‘encomenda’ foi feita no sítio Natura, em Nova Viçosa (BA), onde o artista vivia. Um profundo trabalho de pesquisa remonta à infância e à adolescência, à experiência-limite nos campos de concentração nazistas e conta como Krajcberg redescobriu a vida ao se estabelecer no Brasil, fazendo da denúncia da destruição do meio ambiente o grande tema de sua arte.
Ao final da vida, Frans Krajcberg doou seu acervo pessoal de obras e objetos, bem como seu sítio em Nova Viçosa, ao Governo do Estado da Bahia, responsável por seu legado.
Na Nota dos Editores contida no livro, a extensa pesquisa, com “registros documentais, seus diários de campos e entrevistas com pessoas próximas a Krajcberg”, é ressaltado o fato de que Meirelles “conseguiu manter o distanciamento emocional necessário para produzir uma obra equilibrada, sem julgamentos nem louvores infundados”. Krajcberg tinha 18 anos quando as tropas nazistas invadiram seu país, dando início à 2ª Guerra Mundial, “idade suficiente para que os horrores da guerra e do Holocausto ficassem impressos em sua alma”. Escravizado em um campo de trabalhos forçados, conseguiu escapar e lutou ao lado do Exército Popular da Polônia, ligado à União Soviética, para derrotar os nazistas.
Seus familiares próximos (com exceção de uma irmã) foram mortos nos campos de concentração. Em 1948, Krajcberg emigrou para o Brasil, onde foi acolhido pela família de um tio. Não conseguiu sossegar. “Os traumas da juventude o fizeram desgostar da convivência com as pessoas”. Junto à natureza, “se sentia mais verdadeiro, mais inteiro”. Viajou por todo o país e se apaixonou pela natureza dos diversos biomas brasileiros, das araucárias do Paraná à Mata Atlântica e os campos de Minas Gerais. Ao se deparar com as queimadas na viagem a Juruena, no Mato Grosso, “as árvores calcinadas devem ter evocado memórias de guerra em Krajcberg, que começou a gritar, e continuou gritando até o mundo escutar sua voz contra as queimadas e a devastação, pela proteção aos biomas brasileiros”.
Meirelles, na Introdução, relembra a primeira viagem que fez com Frans, de Nova Viçosa a Juruena, um percurso de três mil quilômetros. Ali, a Floresta Amazônica começava a ser destruída pelas queimadas para a criação de gado. O biógrafo relata uma experiência definidora de sua vida – acompanhar Krajcberg em meio à floresta ardente: “Naquela manhã de calor, ele finalmente decidiu vencer o ciclope de uma grande queimada. Estancou a camionete e saiu correndo em direção às chamas. O fogo consumia os troncos, que choravam e chiavam, exaustos… Frans, revoltado, discursou para as grandes castanheiras que testemunhavam tudo, em pé, desoladas de dor. Gritava, gritava até enrouquecer”.
O biógrafo revela que a história em comum dele com o biografado pode ser dividida em três tempos. De 1984 a 1988, uma intensa convivência, “tão relevante para forjar minha carreira como ativista ambiental”. Depois, um “longo hiato de quase duas décadas”. O terceiro momento vai de 2011, quando Frans comemorou 90 anos, até sua morte, em 2017. “A biografia foi escrita principalmente neste último período, e seguiu até o presente momento”.
Na orelha da edição, Jacques Marcovitch, ex-reitor e professor emérito da Universidade de São Paulo, conta que o autor teve dificuldades ao confrontar as informações prestadas em vida, pelo biografado, com os dados documentais da pesquisa. Marcovitch considera que, para Meirelles, intelectual experiente, não deve ter sido novidade o comportamento mitômano do artista, “cuja sensibilidade manifestava-se de forma tão criativa que, às vezes, atropelava a verdade”. Ele ressalta “a corajosa honestidade intelectual do biógrafo ao comentar informações que lhe foram passadas por Krajcberg e que checagens posteriores não confirmaram”.
No prefácio, Jacques Leenhardt, diretor de pesquisas da École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, afirma que a biografia é “sustentada por um enorme trabalho de documentação, mas também por uma longa amizade e convivência com o artista”, e que em geral esses dois tipos de fontes “não dão uma boa liga”. Porém, para Leenhardt, o autor não teve essa dificuldade. “Ele lida com os testemunhos mais críticos com a mesma naturalidade e simplicidade com que lida com os mais elogiosos. A biografia escrita por João Meirelles ajuda a compreender como, a partir de uma existência violentamente maltratada pela história, Frans Krajcberg soube construir um projeto coerente, cujos fundamentos são a estética e a ética da sobrevivência e cujo testemunho é hoje, para muitos, um chamamento à ação”.
Leenhardt afirma que, desde que começou a se afastar do ofício convencional de artista para abraçar sua vocação de testemunha de acusação no grande processo contra a destruição da floresta, Krajcberg buscou uma linguagem plástica adequada à vocação de manifesto que atribuía à sua obra. “Diante das imensas queimadas de Juruena, Krajcberg compreendeu que elas ofereciam o que ele procurava: a vegetação queimada fundia a mensagem da qual ele se sentia investido com o objeto que transmitiria essa mensagem aos outros. Poderíamos dizer que ele encontrou na madeira carbonizada um símbolo icônico: a coalescência do objeto-suporte com a consciência ecológica”.
Além dos 34 capítulos que compõem um quadro completo dos 96 anos de vida de Krajcberg, de sua obra e evolução artística, e de seu ativismo ambiental, a edição traz 32 páginas coloridas com obras selecionadas e um anexo com manifestos do artista, além de cerca de 50 imagens de arquivo em preto e branco que retratam o artista e sua história.
João Meirelles consegue, neste livro, decifrar Frans Krajcberg e mostrá-lo sem retoques. A fusão do homem e do artista é feita com o distanciamento de um psicólogo ou de outro dedicado estudioso da natureza humana, diz Jacques Marcovitch
João Meirelles, nascido em São Paulo em 1960, reside entre Belém (PA) e Ribeirão Preto (SP) e atua em organizações do terceiro setor há quatro décadas, principalmente à frente do Instituto Peabiru. É administrador de empresas (FGV-SP) e autor de 16 livros, metade sobre a Amazônia. Entre eles, o livro de contos O abridor de letras (Record, 2017, Prêmio Sesc de Literatura) e O livro de ouro da Amazônia (Ediouro, 2004), além de obras sobre viajantes na Amazônia.
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