Uma das situações mais dramáticas no Brasil, que esfrega em nossa cara o quanto somos desiguais e excludentes, é lidar com a miséria e desesperança das pessoas em situação de rua.
De início uma explicação. A nomenclatura mais adequada é essa mesma. A expressão “morador de rua” está superada, afinal, a rua não é local para ninguém morar, e se ali está deve ser visto não como algo permanente ou de vontade espontanea, mas sim fruto de uma série de complexidades e vulnerabilidades econômicas, sociais, familiares e de saúde, que possui caráter provisório e que devem ser tomadas medidas pelo poder público para que tais grupos tenham o resgate de sua cidadania.
O Contexto dos debates está diretamente ligado ao fantástico trabalho realizado pelo Padre Julio Lancellotti, da Arquidiocese de São Paulo pela Pastoal do Povo de Rua, que a décadas vem acolhendo pessoas em situação de extrema miséria na conhecida “Cracolândia” da área central paulistana e denunciando políticas hostis a esses grupos hipervulneráveis, de caráter higienista e que os tratam como verdadeiros grupos incômodos aos olhos das elites e que devem ser expulsos ou removidos à força de um local para outro, com uso excessivo do poder de polícia e arquitetura hostil, em indisfarçável aporofobia (aversão a pobreza, suas externalidades e consequencias para a aparência do local em que se encontram e que “prejudicam” seu ambiente e a atividade econômica local.
Essa é uma questão nacional. Aqui mesmo em Belém, existem diversas cracolândias que crescem a olhos vistos. Basta dar uma passada nas áreas do Bairro do Comercio e Campina, ou na Praça do Operário em São Braz, que você encontra dezenas de pessoas circulando pelas ruas a procura de alimentos ou formas de se obter renda, de forma lícita ou mesmo ilícita, para seu proprio sustento e também para sustentar o vício em entorpecentes. A visão é chocante, mas a forma de se tratar é reconhecer como algo complexo e que exige ações articuladas do poder público e da sociedade civil, e não apenas o uso repressivo da força e da criminalização, que claramente não dá conta da situação e agrava ainda mais o problema.
Em 25 de Julho deste ano, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, acatando uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 976, ajuizada pelo PSOL, Rede Sustentabilidade e MST, concedeu liminar, confirmada pelo Plenário em 22 de Agosto último, determinando um conjunto de medidas efetivas pelos Governos Federal, Estaduais e Municipais, para que de forma integrada e respeitando suas respectivas atribuições, apresentem uma série de informações e diagnósticos, no prazo de 120 dias, sobre o tema.
A decisão parte de algumas premissas:
– O Decreto Federal 7053/2009 é plenamente constitucional e deve ter suas diretrizes seguidas e obedecidas por todo o Estado Brasileiro (União, Estados, DF e Municipios);
– O Quadro grave de omissões históricas do Poder Publico no trato da população em situação de rua revela um potencial Estado de Coisas Inconstitucional (quando as violações a direitos e garantias são tão intensas e difusas que é impossível mensurar individualmente e analisando-se a partir de um contexto, considera-se que tudo relacionado ao tema é inconstitucional e deve ser tratado em sua integralidade).
– concedeu, o prazo de 120 (cento e vinte) dias para que o governo federal elabore um plano de ação e monitoramento para a efetiva implementação da política nacional para essa população, com a participação, dentre outros órgãos, do Comitê intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para População em Situação de Rua (CIAMP-Rua), do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), da Defensoria Pública da União (DPU) e do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, com medidas para o fortalecimento de políticas públicas voltadas à moradia, trabalho, renda, educação e cultura, que respeitem as especificidades dos diferentes grupos familiares e evitem sua separação, destacando a elaboração de um diagnóstico atual da população em situação de rua, com identificação do perfil, da procedência e de suas principais necessidades, entre outros elementos a amparar a construção de políticas públicas voltadas ao segmento.
Além disso, pela decisão, Estados e Municípios devem adotar medidas que garantam a segurança pessoal e dos bens da população em situação de rua dentro dos abrigos institucionais existentes, inclusive com apoio para seus animais. Ademais, fica proibido o recolhimento forçado de bens e pertences, a remoção e o transporte compulsório das pessoas em situação de rua, bem como o emprego de técnicas de arquitetura hostil contra essa população.
Também, os Governos Municipais, no prazo de 120 dias, devem realizar diagnóstico pormenorizado da situação, nos seus respectivos territórios, com a indicação do quantitativo de pessoas em situação de rua por área geográfica, quantidade e local das vagas de abrigo e de capacidade de fornecimento de alimentação.
Sabemos da complexidade da questão e que nada se resolverá em curto prazo, mas certamente a priorização da temática e as medidas exigidas, que devem ser cumpridas, e que naturalmente serão sucedidas de novas medidas e novos prazos considerando a realidade de cada local apontam no caminho de um país mais justo, menos excludente e preconceituoso, reduzindo as desigualdades sociais e sobretudo de respeito às políticas de direitos humanos e a um dos grupos, repita-se, mais fragilizados e marginalizados de nossa história, e que sim, são sujeitos de direitos e devem ser objeto de um olhar mais humanizado, acolhedor e inclusivo.
É o inicio de uma politica pública nacional e efetiva de resgate da cidadania de centenas de milhares de pessoas que estão em geral largadas à própria sorte, sem prejuizo de belíssimas práticas realizadas de forma setorizada por igrejas, governos e entidades da sociedade civil.
Um fio de esperança. Mandou bem o STF. A democracia brasileira merece e aguarda ansiosa os próximos passos de quem de direito.
Comentários