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Existem várias maneiras de conceber o mundo, de entendê-lo em suas objetividades e subjetividades. Uma delas é compreendê-lo como um sistema complexo, dotado de vários elementos que são interrelacionados, relações estas que nem sempre somos capazes de enxergar, como seres humanos limitados que somos. Há uma corrente teórica, da qual sou partidária, de que o planeta Terra já transacionou da Era do Holoceno para uma nova era, a do Antropoceno, ou seja, a Era dos Seres Humanos. O termo foi popularizado nos anos 2000 pelo vencedor do Prêmio Nobel de química Paul Crutzen, para designar uma nova época geológica caracterizada pelo impacto do homem na Terra. E nós, estando na Amazônia, temos preocupações adicionais para levar em conta.

Quando o ser humano interage com a natureza, costumeiramente observamos os efeitos em uma escala micro, seus impactos mais imediatos. Mas em escala macro, alguns sinais chamam a atenção. Em 2015, a NASA descobriu que a poeira do Deserto do Saara viaja por correntes aéreas, cruzando o oceano Atlântico para fertilizar a Amazônia com minerais como fósforo e nitrogênio[1].

Imagem via satélite da nuvem de poeira “Godzilla”, de 2020. Foto: NASA. Disponível em: https://nasa.tumblr.com/post/654801133104136192/last-year-godzilla-made-its-way-across

Enquanto isso, a Amazônia, que é a maior bacia hidrográfica terrestre do mundo, possui rios não só em seu solo, mas também rios aéreos, que transportam umidade para toda a América Latina[2], influenciando o regime de chuvas, por exemplo, no Sul e no Sudeste do Brasil – em consequência, ditando o ritmo e volume das colheitas no Cerrado (influenciando a agricultura), e o nível dos reservatórios de água para abastecer as grandes cidades, a exemplo da megalópole São Paulo (cuja escassez de água está em debate constante).

Foto: Reprodução/Documentário “Os rios voadores da Amazônia”

Logo percebe-se, dessa brevíssima exposição, que os impactos de alterar o bioma Amazônico traz efeitos em cadeia por muitas frentes, em parte ainda não reveladas, mas muitas já profundamente estudadas por pesquisadores de renome, como feito pelo Painel Científico para a Amazônia (Science Panel for the Amazon), convocado pela Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (SDSN). O painel, composto de cerca de 200 cientistas especialistas no tema, lançou um relatório recentemente[3], no qual entende a Amazônia como uma entidade regional, parte de um sistema maior, o Sistema Terra. Uma das principais mudanças apontadas é justamente a intervenção humana no bioma, advinda, dentre outras, das atividades da pecuária extensiva e das mineradoras, que pressionam cada vez mais o território Amazônico.

Vista aérea do projeto de desenvolvimento sustentável Terra Nossa, entre Altamira e Novo Progresso, região onde ocorreu o “dia do fogo” em agosto de 2019. Foto: José Cícero da Silva/ Agência Pública)

Essa pressão pelo desmatamento tem como suas vítimas imediatas os povos originários, tradicionais defensores do território, que tem uma concepção da terra muito mais ampla do que a da civilização colonial. A violência física e simbólica a que estão sujeitos é o impacto mais óbvio na escala micro. Olhando com lentes um pouco mais afastadas, vemos que o cenário macro é também preocupante. O uso do território na pecuária é frequentemente desproporcional, com muitos hectares alocados para a criação de gado sem que toda a sua extensão seja efetivamente produtiva. Favorece poucos latifundiários, em detrimento da subsistência de muitos, a exemplo das iniciativas de agricultura familiar. Ademais, a exploração da atividade pecuarista é voltada principalmente para a exportação, não fomentando o que chamamos de desenvolvimento endógeno, ou seja, o desenvolvimento para dentro do território. A política de preços da carne, inclusive, tem sido voltada ao mercado externo, gerando preços proibitivos para boa parte da população.

Aliás, falando em carne vermelha, o seu consumo no mundo está desarrazoado. Para produzirmos o volume de carne que o mercado demanda, cada vez mais os territórios ainda não explorados serão pressionados. Isso fica evidente pelas estatísticas do desmatamento, como divulgado anualmente pelo INPE[4].  Depois de uma vertiginosa queda do desmatamento a partir de 2004 (com a implantação do monitoramento via satélite em consonância com a fiscalização do IBAMA) até 2014, os números do desmatamento voltaram a subir ano a ano, com uma escalada preocupante a partir de 2019. Some-se a isso os interesses internacionais acerca dos minérios na Amazônia, que frequentemente instalam aqui empresas estrangeiras, cujo impacto ambiental não é revertido de forma proporcional à sociedade e à natureza.

Mas essa não é uma questão só do campo. O consumo massificado tem seu impacto também nas cidades. Quase tudo o que consumimos envolve embalagens e sacolas plásticas. Quanto ao descarte, boa parte das grandes cidades ainda não tem uma política de reciclagem eficiente. O grande volume de resíduos sólidos (lixo e outros detritos) acumulados nas cidades tem impactos locais (causando problemas aos moradores) e globais: já foi encontrado microplástico no gelo do continente Antártico[5].Também a falta de esgotamento sanitário tratado pressiona cada vez mais o meio ambiente urbano, com o descarte do esgoto diretamente no leito de rios e mares – o que gera uma série de problemas de saúde, principalmente na população mais desfavorecida que reside em condições precárias, sem abastecimento de água potável[6]. As cidades costeiras, bem como as ribeirinhas, enfrentam ainda outro perigo em escala macro: o aumento do nível do mar e a mudança no regime de chuvas, devido ao efeito estufa impulsionado pela ação humana. Com isso, os alagamentos e problemas de drenagem urbana tendem a aumentar.

Vila da Barca, comunidade situada em Belém-PA. Foto: João Paulo Guimarães / Mídia NINJA

Do pouco que aqui foi exposto, o que podemos observar é um fenômeno de circularidade causal, um círculo vicioso, que traduz a espiral da acumulação e da ótica do consumo em massa em cada vez mais dano ambiental e social. Diante de tudo isso, o que nos resta como cidadãos? A adoção de algumas atitudes individuais é importante: observar o consumo de plástico, adotar ecobags de tecido, trocar as escovas de dentes de plástico (que demoram cerca de 300 anos para se decompor) por versões de madeira, separar o lixo, fazer compostagem, comprar do mercado local, reduzir o consumo de carne vermelha. Há muito o que fazer e uma parte passa pelas nossas próprias atitudes[7]. Cada pequena atitude conta.

Meu Copo Eco. Foto: Divulgação.

Mas, devo dizer que apenas a ação individual não é suficiente. É necessário também trazer essa mudança para as indústrias e comércios, pois o processo de produção resulta em mais impacto do que a ação do consumidor final. E quem é o único agente capaz de induzir mudanças no meio empresarial, cuja lógica é o lucro? O Estado, que deve agir em prol do benefício coletivo. E quem escolhe os representantes que compõem o Estado em uma democracia? Nós.

Então é necessário, se quisermos ter uma chance de deixar um legado para gerações futuras, que possamos fazer escolhas políticas mais conscientes em 2022, por gestores que tenham a capacidade de perceber a grandiosidade do mundo em que vivemos e tenham dimensão de sua complexidade, bem como da importância da Amazônia. Do que vimos, nosso território não é apenas mais uma fonte de recursos a ser explorada: somos parte de um todo maior, cuja proteção é mais do que um luxo de poucos, e sim uma necessidade de muitos.

Raquel Serruya Elmescany
Auditora de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado do Pará (TCE-PA), graduada em Ciências Contábeis, doutoranda em Desenvolvimento Socioambiental, mestra em Gestão Pública, ambos pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA-UFPA)

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