Barcos regionais a motor, veleiros, vigilengas, rabetas, bajaras, canoas ubás, igarités, catraias, botes fazem parte da memória afetiva, produtiva e econômica parauara, navegando pelo oceano Atlântico, baías, rios que mais parecem mares, lagos, igarapés, furos, estreitos, igapós e campos alagados na várzea. Nos mistérios da Amazônia, a natureza guia o homem em seu modo de fazer e viver.
Meu tio Ary Souza, irmão mais velho de minha mãe, era carpinteiro naval em Oriximiná. Não há registro de qualquer escrito, projeto, planta ou desenho técnico feito no papel por ele, que construiu inúmeras embarcações, de pequeno, médio e grande porte, com modelos e capacidade diferentes. Convidado para um congresso internacional de engenharia naval na Amazônia, em Belém, pediram a ele uma demonstração. Ele disse que seu imenso talento era de nascença. Tirava tudo da cabeça. Desde criança ficava olhando os barcos passarem no rio Trombetas e no rio Amazonas, era só ver e já sabia como fazer. Tudo confeccionado à mão. Usava plaina de serra, serrote, compasso, grampos, e enxó, que é uma das primeiras ferramentas da humanidade. “É só dizer pra que querem o barco que eu faço”, assim desafiou a plateia de professores pós doutores na área, que lhe fizeram uma encomenda. Tio Ary desenhou o barco no flip chart à frente de todos e, ao final, os doutos especialistas conferiram todas as medidas e o design, em computadores dotados de programas de alta tecnologia. Estava tudo perfeitamente correto.
Herança cultural da maior importância, a carpintaria naval precisa se manter viva. A construção naval tradicional, passada de pais para filhos, está desaparecendo ante a falta de cuidados com a permanência do saber caboclo e a inexistência de políticas públicas que valorizem a atividade. Fomentar Casas da Memória e Ecomuseus locais é uma alternativa a esse perecimento. As aventuras de gerações de marceneiros e calafates os saberes acerca da construção de embarcações resultantes do encontro de duas culturas ligadas à carpintaria naval, a Portuguesa e a Tupi, precisam ser contadas.
A vastidão da floresta amazônica, com suas madeiras preciosas e fartas, incrementou em muito essa técnica, aprimorada através dos tempos. Entre as madeiras utilizadas pelos colonizadores e indígenas na construção de embarcações destacavam-se a tabajuba, o angelim e itaíba por serem resistentes; a maçaranduba, de grande utilidade para a calafetagem dos barcos, por sua resina de colagem; o bacuri, por melhor se curvar ao fogo, a sapucaia porque é forte e resistente a água; a pracuíba, boa para o braçame; o pau-rosa, muito macia; a itaúba e a copaíba, oleaginosa de muita resistência, sobretudo onde existe o turu (hoje consumido como iguaria da culinária amazônica), que é um bicho branco que entra na madeira, fura e vai se espalhando por dentro, destrói tudo.
O pesquisador francês Henri Coudreau, ao fazer registros fotográficos, capturou imagens de procedimentos que se empregavam na construção de uma ubá. Nos registros de Coudreau a árvore é abatida com machados, por quatro homens e na imagem seguinte aparece uma ubá de tábuas já pronta, sendo puxada por oito homens para o leito do rio. Tanto a aquarela do século XVIII de Francisco Requeña quanto na fotografia do século XIX de Coudreau, as imagens de fabricação de uma ubá registradas por ambos já revelam transformações tecnológicas oriundas da união dos elementos culturais dos colonizadores e indígenas, ao longo do processo de colonização da Amazônia.
As fotos são de um acervo aleatório do arquipélago do Marajó, de Amarildo Leal, professor no município de Ponta de Pedras e morador da Vila de Mangabeira.
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