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A Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região acatou, à unanimidade, recurso especial do Ministério Público Federal e reconheceu a imprescritibilidade dos crimes cometidos contra o trabalhador rural José Pereira Ferreira. A história revelada nos autos parece enredo de um filme de terror. Em 1989, aos 17 anos, ele foi submetido a condições análogas às de escravo na Fazenda Espírito Santo, no município de Sapucaia(PA), forçado a jornadas excessivas e privação de liberdade, sem remuneração, assim como os demais empregados, e todos trabalhavam vigiados por homens armados, sob condições desumanas. José e um amigo tentaram fugir, foram baleados na cabeça, e ele só sobreviveu porque fingiu estar morto. Seu corpo foi colocado com o do amigo em um saco e deixado à margem de uma estrada. Quando os assassinos se foram, José conseguiu chegar a outra fazenda, onde foi socorrido.

“Não há dúvidas de que estamos diante de imputação de grave violação de direitos humanos, assim reconhecida pelo próprio estado brasileiro, perante um organismo internacional do qual o Brasil faz parte”, declarou em seu voto o relator convocado, juiz federal Érico Pinheiro. Com a decisão, os autos serão remetidos ao juízo de origem, na Justiça Federal de Marabá (PA), 33 anos depois dos fatos, para prosseguimento da ação penal. Em 2019, o juiz federal Marcelo Honorato havia declarado extinta a punibilidade dos três acusados, Augusto Pereira Alves, José Gomes de Melo e um terceiro, conhecido apenas pelo primeiro nome, Carlos, em decorrência de suposta prescrição da pretensão punitiva (perda do direito do Estado de punir ou de executar a pena pelo decurso do tempo, extinguindo a punibilidade).

O MPF alegou a prática de crimes contra a humanidade, graves violações aos direitos humanos, portanto imprescritíveis. No recurso, lembrou que o Brasil é signatário de múltiplos tratados internacionais que reforçam a impossibilidade da prescrição penal nos crimes de lesa-humanidade, tais como a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948), Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), Convenções nº 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho (1957 e 1965), Comissão Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, o qual o Brasil aderiu em 1992), Estatuto de Roma (2002), além de diversas resoluções da Assembleia Geral da ONU.

A decisão do TRF1 acolheu o argumento de que a imprescritibilidade de tais crimes é o reconhecimento da proibição da escravidão como norma imperativa de direito internacional, e não uma aplicação retroativa da Convenção Americana de Direitos Humanos, como sustentava a sentença reformada.

Em casos de crimes com graves violações aos direitos humanos, como tortura, execuções sumárias e redução à condição de escravidão, os tratados internacionais dos quais o Brasil faz parte – vários deles pactuados muito antes da data dos fatos – ganham caráter supralegal, ou seja, se sobrepõem ao conjunto das leis, posicionamento harmônico com a Constituição Federal e consolidado no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

Por mais de uma ocasião, inclusive, o STF já se manifestou no sentido de que o crime de redução a condição análoga à de escravo atenta, para além da liberdade individual, contra a própria dignidade da pessoa humana. Já o TRF1, por sua vez, também fixou precedente no sentido da imprescritibilidade de crimes de escravidão, no julgamento de habeas corpus em caso semelhante ocorrido na Fazenda Brasil Verde, também no Pará, tristemente famoso por tais violações.

O estado brasileiro assumiu, em 2003, perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o compromisso de julgar o caso. O país chegou a ser acusado pelas organizações não governamentais Américas Watch e Centro pela Justiça e o Direito Internacional de não ter respondido adequadamente às denúncias de prática de trabalho análogo à escravidão e de haver desinteresse e ineficácia nas investigações e processos referentes aos criminosos.

Na ocasião, o Brasil reconheceu, pela primeira vez, sua responsabilidade pela existência de trabalho escravo em seu território e também se comprometeu a adotar medidas – incluindo modificações legislativas – para prevenir e punir outros casos, além de iniciativas de conscientização sobre o tema.

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