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O termo “viver de música” possui amplas acepções e entendimentos ao longo da história da humanidade. Viver de algo é ter naquilo a substância de sua vida e sustento, cujo fruto daquele trabalho gera a renda para a sobrevivência e o custeio de responsabilidades.

Em um mundo cada vez mais capitalista e voltado ao consumo, a felicidade se resume em possuir aquilo que proporcione condições para uma vida confortável e segura, ou seja, possuir dinheiro suficiente. Porém, o suficiente se torna relativo em um mundo de consumo desenfreado.

É normal a busca por profissões e trabalhos que gerem renda e lucro, mas é imperioso não esquecer que a satisfação pessoal oriunda da realização interior é fundamental para os que realmente pensam em si. Porém, somente as mentes mais desenvolvidas e espiritualmente evoluídas podem compreender e descobrir o real sentido de suas vidas. Descobrir o seu papel neste mundo é uma arte divina, pois coloca o ser vivente cara a cara com o destino e com a descoberta sobre o que se fez, se faz e o que será feito no âmbito da contribuição nesta vida para que um legado exista e a verdadeira imortalidade possa emergir, não como troféu, mas como um reconhecimento; um reconhecimento que se configura como um dos mais significativos: ser lembrado ou admirado por alguém, por suas obras e ações.

Poucos são aqueles que encontram sua felicidade naquilo que possuem.

Certa ocasião, um velho músico, ao responder à pergunta que indagava se ele desejava ter mais recursos financeiros para uma vida confortável e feliz, disse: “Eu tenho o suficiente!”. O “suficiente” é totalmente subjetivo, pois cada um tem noção do que deseja em seus sonhos de riqueza material. Ter o suficiente não significa ser pobre ou ser rico, significa ter a sabedoria de valorizar algo para além da matéria, algo que não se compra, pois não está a venda. Por mais romantizada que pareça a ideia de que a felicidade não se compra, hodiernamente é muito mais comum se observar pessoas com muito dinheiro e pouco sentimento de felicidade, bem como pessoas muito felizes com poucos recursos. Assim como a técnica instrumental está a serviço da música e não o contrário, o dinheiro está a serviço da vida e não o oposto. Entregar-se desmedidamente às atividades que geram renda e não satisfação é vender a um preço insignificante o bem mais precioso da vida: o tempo.

O pensamento de um dos maiores expoentes intelectuais de Roma, o filósofo Sêneca (Lúcio Anneo Sêneca 4 a.C. – 65 d.C), em suas epístolas a Paulino, personagem cuja existência real a historiografia canônica jamais confirmou, afirmava que a maioria dos mortais lamentava a maldade da natureza pelo fato de, já ao nascimento, em sua curta existência, o ser humano iniciar tendo os anos a transcorrerem de forma furiosamente veloz, de maneira a, no esplendor da vida, no momento de maior experiência e sabedoria, ser justamente a vida a o abandonar. Para muitos a existência é um sopro de tempo; mas para outros é tempo suficiente, se gasto e aproveitado com sabedoria. Para estes a vida é muito generosa em seu tempo.

Vale refletir sobre o que escreveu Hipócrates, em seus aforismos 1,1 .

“A vida é curta, a arte é longa. A ocasião, fugidia. A esperança falaz. E o julgamento, difícil”.

Para quem sabe viver, a vida é longa e generosa, mas quem não descobre o motivo real da sua existência não vive, sobrevive. Ao lançar-se em desafios, aquele que não possui propósito encontra desgosto. Aquele que sabe o porquê da verdade existencial encontra forças mesmo nas derrotas, pois acredita em sua causa e sua energia concentra-se no seu mais fiel propósito, naquilo que norteia sua vida.

Viver de música é um propósito que vai além da montanha visível dos bens materiais. Por outro lado, é revoltante e desesperador saber-se preso ao destino de existir naquilo que se descobriu ser, quando aparentemente o ofício descoberto, a razão da vida clareada nos olhos de quem vê, não gera uma vida de compensações materiais e não proporciona conforto material na velhice. É o que acontece com algumas profissões simples como a do profissional da música. No Brasil, a formalização da profissão do músico somente foi regulamentada pela Lei nº 3.857, de 22 de dezembro de 1960, que criou a Ordem dos Músicos do Brasil, estabelecendo normas para a profissão. Curiosamente, apenas duas profissões dispõem de uma Ordem, a dos advogados e a dos músicos. A OAB, extremamente importante e cortejada, por representar os profissionais que dão voz aos que necessitam da aplicação das leis. A segunda, a dos Músicos, digna de pena e às vezes até de chacota, sempre foi atacada, menosprezada e recentemente recebeu o tiro de misericórdia que a colocou na vala comum do cemitério das profissões. Em 2014 o Supremo Tribunal Federal determinou que o registro na Ordem dos Músicos do Brasil não é mais obrigatório para o exercício da profissão.

O viver de música, no entendimento de muitos, não deve passar de um sonho de uma noite de verão, regada a sorrisos em reuniões fugazes e passageiras, onde o que se percebe é o peso terrível da ignorância de quem não sabe o que é fazer arte, como tocar um instrumento. Quantas horas são necessárias para a execução de uma só peça ou, ainda, quanto tempo se leva para produzir um evento ou compor uma música. É necessário haver ordem e a culpa, em boa parte, também é da própria classe que não se faz respeitar e reafirma o mito de que para compor ou tocar basta um copo de whisky, um banquinho e um violão. Quem fazia isso na década de 60 e 70 em grande parte tinha aposentadoria ou renda oriunda de trabalho em outro ramo diferente do da arte.

O poeta paraense João de Jesus Paes Loureiro, em certo momento, disse a um jovem músico que questionava a sua profissão e queria abandoná-la:

“Não faça isso! Não adianta. Você foi picado pelo veneno da música”.

Na época, o receptor desta frase afiada como uma lâmina não compreendeu a metáfora e pensou até que o poeta se referia à música como algo ruim, mortal. Porém, a profundidade metafórica da frase encontra eco no fato de que o jovem musico iria morrer músico e nada nem ninguém poderia salvá-lo ou removê-lo deste destino.

Assim, todos são picados por algum veneno em seus preciosos dias de existência; um veneno que acompanhará aquela pessoa até a última batida do tambor em seu peito. Muitos jamais saberão sequer se foram picados ou não. Muitos resistirão recorrendo a antídotos totalmente ineficazes, sucumbindo em sua revolta. Outros orgulhar-se-ão de descobrirem-se escolhidos para uma missão que lhes foi dada. Uma oportunidade de escrever seu nome na história por meio da simples lembrança de seus feitos, pela lembrança de seu nome. A maior virtude não é simplesmente viver, mas viver de alguma coisa. Quando se vive de algo se descobre que aquilo vive em si e que essa simbiose, essa sinergia, vai além da escolha. Viver de música é viver para a música e viver a própria música, pois a cada vez que se recolhe o violão ao estojo vive-se um dia com propósito, descobre-se que a vida cumpriu o seu real sentido: viver de música.

Salomão Habib
Salomão Habib é violonista, compositor, concertista, palestrante, escritor, pesquisador, professor e contador de histórias. Membro da Academia Paraense de Letras, tem seis livros publicados. É o maior pesquisador da obra e vida de Tó Teixeira e tem 8 DVDs e 46 CDs gravados, um na Alemanha. Já se apresentou na Argentina, Portugal, Cuba, Venezuela, Bélgica, Suíça, Itália e Alemanha. É autor de mais de 450 peças musicais, idealizador e coordenador do projeto Cantarolar, reconhecido pelo Unicef.

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