0
 

O caso de Preston Damsky, estudante de Direito da Universidade da Flórida (UF), reascendeu esta semana os debates sobre os limites éticos da liberdade de expressão, os riscos da neutralidade institucional e a crescente legitimidade pública do discurso supremacista branco nos Estados Unidos que tem influenciado o mundo inteiro. Em 2023, Damsky foi premiado com o “book award”, uma honraria da instituição concedida ao melhor aluno da disciplina, após apresentar um artigo no qual defende que a Constituição dos EUA se aplica apenas a pessoas brancas, que o sufrágio dos não brancos deveria ser – vejam bem – revogado, e que a defesa da soberania branca pode demandar ações violentas.

O artigo, escrito durante um seminário sobre originalismo ministrado pelo juiz federal John L. Badalamenti, sustentava que os fundadores do país não pretendiam incluir pessoas não brancas na expressão “We the People” (“Nós, o povo”). A partir disso, Damsky defendeu, entre outras teses, ações extralegais contra imigrantes e a revisão das emendas constitucionais que garantem direitos civis às populações não brancas. Não apenas o conteúdo foi aceito como legítimo no ambiente acadêmico como, pasmem, foi premiado. A justificativa da universidade foi o compromisso com a “liberdade de expressão” e a “neutralidade institucional”.

Mas a situação rapidamente se agravou. Após abrir uma conta na rede social X, do conhecidíssimo propagador de discursos de ódio e fake news Elon Musk, Damsky passou a publicar declarações abertamente racistas, antissemitas e de apologia à violência. Em uma das postagens, afirmou que “os judeus devem ser abolidos por qualquer meio necessário”. Foi só diante da repercussão nas redes sociais que a Universidade da Flórida o suspendeu, o proibiu de frequentar o campus e reforçou o policiamento em torno da faculdade de Direito. Agora, Damsky enfrenta um processo disciplinar que pode culminar em sua expulsão.

O argumento da neutralidade institucional, cada vez mais invocado por universidades estadunidenses diante de questões polêmicas, foi o pilar da defesa feita pela reitora interina da faculdade de Direito, Merritt McAlister. Em e-mail à comunidade acadêmica, ela sustentou que a universidade, como instituição pública, não pode penalizar alunos por expressarem ideias controversas, e que professores não devem “avaliar ideias, mas sim argumentos”. A comparação feita por docentes defensores da tese é de que um professor contra o aborto deveria ser capaz de dar nota máxima a um texto bem fundamentado que defenda o aborto legal.

Contudo, o caso expõe os limites práticos e morais dessa equação. Damsky não apenas defendeu ideias historicamente associadas ao Ku Klux Klan, como o próprio conteúdo do artigo conclui com uma ameaça velada: se as cortes não agirem para garantir uma nação branca, isso será decidido “não pelos pratos da balança de Justiça, mas pela lâmina ensanguentada de sua espada”. Para muitos alunos e professores, premiar esse discurso é simplesmente legitimá-lo.

A professora Carliss Chatman, que foi visitante na UF durante o semestre, se disse espantada, em entrevista para o New York Times, com a dissonância entre sua experiência e a tolerância à retórica supremacista. Ela teve o nome de sua disciplina alteradode “Race, Entrepreneurship and Inequality” (Raça, Empreendedorismo e Desigualdade)para apenas “Entrepreneurship” (Empreendedorismo) devido à pressão de políticas estaduais contra conteúdos relacionados à diversidade. “É fascinante que esse aluno possa escrever uma série de manifestos supremacistas em nome da liberdade de expressão, mas eu não possa usar a palavra ‘raça’ no título da minha aula”, criticou.

A premiação de Damsky dentro de uma escola de Direito de prestígio, mesmo defendendo ideias que negam os direitos civis de grande parte da população americana, levanta questões urgentes sobre o uso completamente seletivo da dita liberdade de expressão como escudo para a intolerância. O caso também encancara a tensão entre os direitos individuais e o dever institucional de garantir ambientes seguros, diversos e intelectualmente honestos.

Damsky alega não representar ameaça física a ninguém. Suas postagens, entretanto, foram consideradas tão alarmantes que a universidade reconheceu que diversos alunos, especialmente os de comunidades judaica e negra, relataram medo de frequentar as aulas. A UF, que possui o maior número de estudantes judeus de graduação no país, agora se vê em meio de uma crise interna de confiança, especialmente entre os grupos minoritários que se sentem desprotegidos.

O caso também reflete um cenário mais amplo: o crescimento de figuras públicas e plataformas que banalizam o discurso de ódio sob o pretexto de defesa da liberdade. A circulação massiva da nova música de Kanye West exaltando Hitler na rede X, que se recusou a remover o conteúdo, e a defesa do vice-presidente J.D. Vance à inclusão de partidos de extrema-direita no debate político europeu, mostram que o problema está muito longe de ser isolado.

Premiar um artigo que defende ideologias associadas ao nazismo, ao apartheid e ao supremacismo é academicamente indefensável e moralmente irresponsável. Ainda que o debate jurídico aceite uma variedade de correntes teóricas, há uma linha clara que separa o exercício da crítica legal da apologia ao ódio racial e ao genocídio.

O caso Damsky, portanto, não é sobre liberdade de pensamento, liberdade de expressão, mas sim sobre a instrumentalização da academia para validar teses que atentam contra a vida, os direitos e a dignidade de milhões de pessoas. Neutralidade institucional não pode significar conivência com discurso de ódio e projetos de exclusão e violência. A democracia não pode deixar de ser uma garantia comum para se tornar uma concessão seletiva, reservada aos que cabem na definição estreita e branca de “We the People”. E, sim, este caso interessa ao mundo inteiro. Infelizmente, acabamos por repercutir tudo o que acontece pelas bandas de lá, seja qual for a nossa banda do globo.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

MPF pede suspensão imediata de licença para explosão de rochas no Rio Tocantins

Anterior

Você pode gostar

Mais de Notícias

Comentários