No último mês de setembro, uma matéria da edição brasileira da revista Rolling Stone projetou nacionalmente o videoclip de “Abrace o Marajó, Mas Não Amam o Marajó”, música de Bart MC, rapper marajoara, produzida pela ONG Observatório do Marajó, que critica com propriedade o projeto do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos intitulado “Abrace o Marajó” – sim, aquele que, em seu lançamento, a ministra Damares Alves deu a absurda declaração de que as meninas marajoaras são estupradas por não usarem calcinha e que o problema do abuso sexual seria resolvido com a implementação de uma fábrica de roupas íntimas no arquipélago.
A música de Bart – alcunha que André Felipe ganhou por usar camisetas do personagem homônimo dos Simpsons – reflete a indignação do povo marajoara pelas arbitrariedades do projeto do governo federal, que não escutou a sociedade sobre suas reais necessidades e tampouco cumpriu o escasso assistencialismo que prometeu. Ele próprio é o reflexo das faltas de políticas públicas e do descaso com a região: aos 25 anos não conseguiu concluir o Ensino Médio, apesar da enorme vontade de, um dia, ir para a universidade e se tornar professor de História. Também não tem emprego formal e, para sobreviver, vende chope (como é chamado o tradicional saquinho de suco de fruta congelado) nas ruas de São Sebastião da Boa Vista.
O MC, apesar de suas próprias dificuldades pessoais, é um fomentador da cultura no Marajó. Criou o projeto Facção da Ilha, destinados aos jovens interessados em produzir cultura hip hop, que teve de ser interrompido pela falta de apoio. Ao que parece, não há interessados em investir em uma juventude que busca desenvolver o pensamento crítico, que denuncia as mazelas da comunidade e clama por mudanças através da música. Bart MC desabafa: “A arte, a educação e a cultura abrem mentes, tornam as pessoas pensantes, formadoras de opinião e isso muda tudo. As pessoas deixam de se conformar com migalhas e se revoltam, aprendem a exigir e escolher melhor seus governantes, e é por isso que o governo não investe nessas áreas, não querem seres pensantes.”
O movimento hip hop foi criado pelas comunidades afro e latino americanas do Bronx, em Nova York, nos anos 70. Ao lado do breakdance, do graffiti e do DJing, o rap – abreviatura de rhythm and poetry (ritmo e poesia), estilo musical em que o canto é substituído por uma fala ritmada – tem teor altamente político e social desde os seus primórdios e nasceu como meio de protesto dos guetos, comunidades muito pobres, violentas, com problemas estruturais gravíssimos na saúde, educação, saneamento básico, geração de empregos. Qualquer semelhança com o Marajó não é mera coincidência, assim como com o repente nordestino, que também usa suas rimas poéticas para amplificar a voz do povo sertanejo. Pra quem tem curiosidade de saber um pouco mais sobre o movimento hip hop, tenho duas sugestões: uma, mais pop, é a série The Get Down, da Netflix; a outra é o livro Cabeça de Porco, do rapper MV Bill, seu empresário Celso Athayde e do antropólogo Luiz Eduardo Soares, que a três mãos dão uma visão ampla e assustadora da situação de crianças e adolescentes nas periferias brasileiras e também elucidam sobre o papel de extrema importância dos projetos sociais de hip hop – e de todas as outras formas artísticas e também do esporte – para a mudança (e a preservação) da vida desses jovens. Sem medo nenhum eu digo que este livro mudou a minha vida.
Ao parafrasear Comida, dos Titãs, Bart MC grita as súplicas de uma juventude que quer tão mais, mas que precisa muito do básico que não tem. Ontem mesmo o presidente da república, em mais uma de suas centenas (talvez milhares) de ações absurdas, vetou a distribuição gratuita de absorventes para mulheres de baixa renda. No Brasil, os absorventes menstruais são taxados como itens cosméticos quando, na verdade, são uma necessidade básica de saúde pública. As mulheres de baixa renda e em situação de vulnerabilidade, que independentemente da idade, são estatisticamente as maiores vítimas, de abusos, violência, exploração, tráfico humano, quando escapam ou sobrevivem, não podem realizar suas atividades pela falta de um item básico – ou então põem em risco sua saúde utilizando métodos não-seguros. Segundo dados da ONU, a pobreza menstrual no Brasil é alarmante: 25% de meninas entre 12 e 19 anos não frequentam as aulas durante seus períodos menstruais por causa da falta de absorventes. Uma jovem mulher na situação de Bart MC, por exemplo, além de todas as dificuldades por ele enfrentadas, teria de ficar em casa durante quatro a cinco dias por mês porque o presidente da república considera que este não é um item de interesse público.
Bart MC tentou, por alguns períodos, a vida em Belém. A falta de oportunidades sempre acabou por levá-lo de volta para a casa da família, porém a vivência na capital paraense, onde ele entrou em contato com a cultura de protesto através das batalhas de MC’s e formou a dupla Essência de Rua, mudou sua trajetória de vida. Ele sonha, com a repercussão do videoclip, ter mais oportunidades para se apresentar e, assim, ter dinheiro para custear o Facção da Ilha. “Os poucos projetos sociais que existem destinados a crianças e adolescentes – denuncia – não recebem apoio. Aqui não tem nada, somos esquecidos desde muito cedo, há muito tempo. O Marajó parece que tá apagado do mapa do Brasil”.
Comentários